terça-feira, 5 de maio de 2015

Sabedoria ancestral

Maria Aurélia foi diferente de suas amiguinhas desde muito pequena. Gostava de brincar sozinha. Ficava quietinha por muito, muito tempo, observando uma coisa qualquer, uma formiga caminhando ou uma folha de árvore balançada pelo vento. Via coisas que os outros não notavam, como o reflexo do sol na parede, que formava uma letra A perfeita. Quando perdiam algo, logo pediam a Maria Aurélia que procurasse, pois ela encontrava, mesmo que fosse um cisco num carpete.
Era linda, de cabelos escuros e olhos verdes. Talvez por isso, talvez por ter sido sempre muito elogiada, fechou-se em copas. Era tímida no contato com as pessoas. Gostava de plantas e animais. Com esses entendia-se perfeitamente. Cachorros, gatos, pintinhos, todo tipo de bicho se sentia seguro ao lado de Maria Aurélia, que conversava com eles com uma voz muito mansa. Assim, quando ia pela rua, ela nunca estava só. Sempre era acompanhada por uma fileira de animais que brincavam de trançar entre suas pernas.
Com as plantas ela era um pouco mais dura. Mas foi nessa área que sua esquisitisse se revelou milagrosa.


Um dia, quando cuidava de uma suculenta que ganhara de sua mãe, que por sua vez ganhara de sua avó, e que insistia em crescer e se multiplicar em novas e novas mudas, Maria Aurélia escutou uma vozinha.
_ Não mexa nas minhas mudas hoje. O tempo não está bom e com a chuva as mudas menores vão se afogar.
Como era de se esperar, Maria Aurélia ficou paralisada. Como? Será que ouvira mesmo a planta falar? Sonhara ou estava ficando louca? Mas como o céu de fato ameaçava chuva, ela decidiu deixar aquelas mudas para outro dia.
O outro dia chegou. E nele Maria Aurélia lembrou que quando criança ouvia histórias sopradas pelo milharal detrás de sua casa. E quando se achegou à suculenta logo ouviu: 
_ Hoje sim é dia de limpeza! Depois de cuidar de mim vá revolver a terra da roseira, pobrezinha, que está ficando fraca por falta de cuidado. Aliás, você não tem visitado sua mãe ultimamente - faça isso hoje.
Uau! Maria Aurélia parou tudo. Como assim? Minha mãe? Falei com ela ao telefone e tudo está bem por lá!
_ Sim, mas ela sente a sua falta. Falta de olhar nos seus olhos. Falta de segurar sua mão. Vá vê-la.
Maria Aurélia nem quis pensar no assunto. Em todo o caso, cuidou da suculenta e revolveu a terra da roseira, que de fato estava seca e dura.
Na manhã seguinte, um botão de rosa amarela aguardava a chegada de Maria Aurélia ao jardim. Lindo. Perfeito. Nascido assim, de um dia para outro. Ela beijou o botão, ligou o carro e foi visitar sua mãe - que a recebeu com os olhos marejados. Não por uma razão especial, mas porque queria ver a filha, acariciá-la com os olhos e com as mãos.
Ao voltar para casa, Maria Aurélia sentou-se ao lado da suculenta e agradeceu seus conselhos. Disse que ela havia sido muito gentil em compartilhar sua sabedoria. Uma sabedoria ancestral.
_ Pois hoje tenho uma má notícia, disse a planta, aquela amiga mais antiga, de quem você tanto gosta, está com uma doença incurável. Vai morrer em breve.
Silêncio. Medo. Pavor, na verdade. O que fazer? Se digo a minha amiga que uma planta me avisou que ela está doente, certamente serei tratada como louca. Mas não importa. Louca ou não tenho de avisá-la. Foi. Avisou. E ninguém acreditou nela.
No dia seguinte, Maria Aurélia foi perguntar à sua planta se havia alguma maneira de salvar a vida da amiga.
_ Há sim, claro, se você me matar ela viverá.
_ Mas como posso matar uma planta única, especial, que me é conselheira e amiga?
_ Arranca minhas raízes da terra e deixa-me secar ao sol. Sua amiga vai sentir-se mal por uns dias, mas logo vai melhorar.
Crise. Maria Aurélia passou o dia fechada em casa. Foi arrancada de seu mundo interior pelo toque do telefone. Avisavam, do hospital, que sua amiga havia sido internada e que as chances de sobrevivência eram muito pequenas. Ela correu ao jardim. Arrancou a suculenta e todas as suas raízes, deixando aquele emaranhado ao sol para secar, com mil pedidos de desculpas.
Como já se pode adivinhar, a amiga de Maria Aurélia melhorou e rapidamente, em uma semana, estava em casa. Maria Aurélia contou-lhe o acontecido e a amiga entristeceu-se: 
_ Como você foi capaz de destruir uma maravilha da natureza em troca da minha vida?
E foram as duas, de braços dados, visitar o local do jardim onde antes estava a suculenta falante. Sentadas, pensativas, ficaram ali por um bom tempo até que os olhos de lince de Maria Aurélia vissem o que precisavam ver - um broto da suculenta assomava timidamente da terra.
_ Quem sabe um dia poderemos conversar e sermos boas amigas, disse, enquanto molhava a terra em torno da pequena planta.

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