segunda-feira, 4 de outubro de 2010

O semeador de livros

Num antigo bairro paulistano, afastado do centro da cidade, onde nos anos 1950 e 1960 se instalaram famílias de classe média, se encontrava aquela casa clara, térrea, com jardim amplo - embora já bastante reduzido. Nele foi construído um prédio moderno, climatizado, de concreto armado, para abrigar os milhares de livros, obras de arte, lembranças de viagem do casal Mindlin, José e Guita.

José e Guita compartilharam tudo na vida por 68 anos. Acreditavam que amor e casamento são construções diárias, e que ser feliz é questão de querer. “Brigar é fácil. Não brigar exige parar e pensar”, ensinava José, o sábio.

Logo à entrada, à direita, ficavam a cozinha e a mesa de refeições – onde ambos almoçavam juntos diariamente, quase sempre na companhia de algum amigo. Adiante ficava a sala, dominada por uma enorme estante e decorada com esculturas e pequenos objetos – os quadros eram tantos que ficavam pendurados até sobre as portas. Do janelão de vidro da sala se via o prédio da biblioteca, com mais de 40 mil exemplares cuidadosamente catalogados e preservados.

A coleção começou a se formar quando Mindlin tinha 13 anos de idade. Sua primeira aquisição foi Discours sur l'Histoire universelle de Jacques-Bénigne Bossuet, de 1740. Com o tempo, a biblioteca tornou-se famosa por suas raridades – manuscritos históricos e literários; a versão original de Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa; as primeiras edições de Os Lusíadas, de Camões, de O Guarani, de José de Alencar, e de A Moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo.

Foi neste ambiente que o maior e mais importante bibiliófilo do Brasil curtiu seus últimos 15 anos de vida. Escreveu Uma vida entre livros – reencontros com o tempo, autobiografia deliciosa em que ele confessa, entre outras coisas: "Num mundo em que o livro deixasse de existir, eu não gostaria de viver."

Mindlin encontrava o que queria com um olhar rápido para a estante – a mão alcançava o volume como se estivesse sendo puxada por um imã. Citava longos trechos com lágrimas nos olhos. Recitava décor textos de literatura de cordel. Com paciência sem fim, fazia recomendações de leitura, explicava a importância de autores, contava histórias. E lamentava que a vida fosse tão curta para tanto que havia para ler e apreciar. Conversar com ele era como fazer um curso intensivo. Um prazer.

Filho de um casal de judeus russos que chegou ao Brasil em 1910, Mindlin era advogado formado na Universidade de São Paulo. Era considerado por seus pares como administrador de competência indiscutível, comandante da fábrica de autopeças Metal Leve, exemplo de sucesso e de resistência contra a concorrência de companhias estrangeiras. Desfez-se do negócio com um nó na garganta em meados de 1996, aos 81 anos.

Aposentado como empresário, dedicou-se em tempo integral a suas outras paixões: a leitura e a biblioteca. Em 2006, depois de enfrentar burocracias injustificáveis, conseguiu doar 15 mil exemplares de sua coleção à Universidade de São Paulo, e o acervo foi transferido para o campus da universidade. Mindlin morreu aos 95 anos de idade, em fevereiro de 2010 – com quatro filhos, 12 netos e 12 bisnetos – sem ver pronto e em funcionamento o prédio da biblioteca Brasiliana. O site da biblioteca é http://www.brasiliana.usp.br/index.php. Inclui uma ferramenta para pesquisa digital que permite (ao menos parcialmente) acesso a folhetos e periódicos buscados por conteúdo.

Antes de sua morte, com a vista cansada e enfraquecida, dizia: “Tenho saudades de passear os olhos pelas letras enfileiradas, no silêncio da leitura, e de manusear o objeto de papel e tinta. Nada substitui o livro.”

Leia mais sobre José Mindlin no site da Academia Brasileira de Letras - http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?sid=546

Nenhum comentário:

Postar um comentário