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domingo, 22 de agosto de 2010

Senso de oportunidade I

Conheci ainda jovem, recém-chegado ao Brasil com uma mão na frente e outra atrás, um karateca talentoso, que se tornou campeão reverenciado e dono de uma academia na Avenida Vergueiro, a BUtoku-kan: Takedo Okuda.

Não era um tipo muito sociável. E sua disciplina militar não me atraía. Em todo o caso, estava em todos os lugares, onipresente, enquanto eu treinei karatê.

Os anos passaram. Mais de uma década mais tarde, já trabalhando como jornalista, fui escalada para ir à casa de uma socialyte, uma figura chiquérrima, magérrima, elegantérrima, viajadíssima, que morava numa casa deslumbrante nos Jardins, em São Paulo.

A entrevista era sobre negócios, mas o papo foi rolando, eu tinha de saber alguma coisa sobre sua vida para dar tempero à reportagem, e acabei trombando com algo completamente inesperado.

Minha entrevistada participava de um grupo de meditação, yoga, taichi... Uma mistura que, segundo ela, trazia paz e propiciava a confraternização entre as pessoas. O grupo, seletíssimo, fazia uma hora de exercícios e, ao final, degustava um jantar gourmet regado a vinhos e champanhes. Um luxo total.

Quem era o instrutor, o mestre, que cobrava uma baba pelo serviço e no final filava a boia? Takedo Okuda! Aquele meu velho conhecido!

Dinheiro não é problema


O mote do professor de karatê Juichi Sagara, um dos primeiros vindos do Japão para o Brasil, não tinha lá muito sentido, mas nunca saiu da minha cabeça: “Dinheiro não é problema”, ele dizia – quer a situação tivesse ou não a ver com dinheiro, projetos, o que fosse.


Tinha uma academia no Ipiranga, na Avenida Dom Pedro, do lado oposto ao do Museu. Dava aulas no andar de baixo e morava com a mulher no andar de cima.


Aconteceu que um colega de escola, Jim Sato, começou a treinar karatê – e tanta propaganda fez, que eu e Adélia resolvemos entrar nessa. Mas havia um problema. Visitamos academias e academias, e nenhuma aceitava nossa matrícula: karatê era coisa de homem. Isso até que um baiano karateca, Denílson Caribé, recomendou Sagara. Não que ele fosse exatamente um liberal, mas naquele universo era o melhor que poderíamos almejar.


A conversa com Sagara foi longa, com muitas negociações. Nós éramos adolescentes. Precisamos levar autorização escrita de nossos pais para ingressar naquele mundo masculino. Mas no final as coisas se acertaram. Sagara tornou-se nosso sensei, nosso mestre. Aprendemos e treinamos com ele durante anos.


As aventuras foram tantas que, só elas, dariam um blog inteiro. Fiquemos no básico.
Treinávamos com um bando de marmanjos que tomavam o maior cuidado para não nos machucar – então, fizemos que fizemos, ficamos fortinhas, aprendemos técnicas e mais técnicas, e desafiamos os machões no seu território. Por vezes nos demos bem, em outras nos machucamos. Mas no final dos treinos, roxas, doloridas, encharcadas de suor, sempre estávamos bem felizinhas.


Na academia não havia vestiário feminino. Então usávamos a lavanderia da casa, no andar de cima, tirávamos o quimono ensopado, tomávamos um banho de gato na torneira do tanque, nos aprumávamos e saíamos para a avenida, já noite, para tomar o ônibus – o Fábrica, que dava uma volta e meia por São Paulo antes de nos deixar na Avenida dos Maracatins, no Ibirapuera. De lá, íamos a pé para casa – não sem antes comprar dois pacotes daqueles deliciosos e crocantes biscoitos sembei, tipo biju, que comíamos compulsivamente.


Uma tarde, a mulher de Sagara, que não era de muita conversa, como convém à esposa de um japonês, nos convidou para sentar à sala. Em torno de uma mesinha baixa estavam reunidos alguns dos alunos preferidos de Sensei. Conversavam, riam, contavam histórias. Chegou uma travessa. Filetes de cobra a marinara ou ao vinagrete... E também uma garrafa de pinga, com uma cobra meio desfeita enrolada dentro...


Argh!!


Comemos e bebemos, evidentemente. Não se pode fazer desfeita a um Sensei. Na verdade, o evento era uma honra. E acabamos concluindo que a pinga tinha gosto de cachaça como outra qualquer, e a carne de cobra era como isopor ao vinagrete. Nada demais.


Encontrei com Sensei uma vez, muitos anos depois, num avião, de volta de Brasília. Ele era irmão do lutador e senador Kanji Inoki, que fora convidado para a cerimônia de posse do ex-presidente Fernando Collor de Mello, em 1989 – e tomara uma carona no convite. Sequer conversamos. Hoje, pesquisando, descubro que Sensei Sagara morreu em 2001... Nove anos atrás!!

A foto mostra Sagara como conheci. Adorava um katá. Foi retirada do site ejmas.com.