quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Uma praia de deserto

Os Beatles, Agatha Christie, William Shakespeare. Todos amavam Tenerife, a maior das ilhas Canárias, pertencentes à Espanha até os dias de hoje, embora estejam a uns 1.300 km da Península Ibérica.

As ilhas Canárias atraem muitos turistas. E Tenerife é um lugar paradisíaco para quem procura paz, silêncio, solidão. Ruas tranquilas, muitos velhinhos, mercados em praças públicas, tudo muito organizado.

Interessante é que não tem muito de natural por ali. A população nativa misturou-se à europeia, e dela não resta mais traço algum. A vegetação original, formada por pinhais, foi derrubada para o plantio de cana-de-açúcar e nunca mais se recompôs. Como a ilha é vulcânica, as poucas praias que existem são de pedriscos ou de areia preta. Com uma exceção: Las Teresitas.

Ah, como todos se orgulham deste recanto! Trata-se de uma praia feita pelo homem. Para se espreguiçarem ao sol com maior conforto, os espanhóis importaram cerca de quatro milhões de sacos de areia de sua antiga província no deserto do Saara, na África. Isso foi em 1973. O esforço foi imenso e o resultado não foi lá grande coisa.

Ok. Os espanhóis queriam ter uma praia de verdade em suas férias de verão. Mas lamentavelmente escolheram um local pouco apropriado. Em Las Teresitas o vento é cortante dia e noite, em todas as estações do ano. Só os mais estoicos estendem esteiras para tomar um bronze sob o sol canarinho, por assim dizer.

Tenerife é para quem gosta de estar em casa, de caminhar tranquilamente por ruas limpíssimas, ou de se aventurar por trilhas em montanhas vulcânicas. Aí sim, vale o passeio. 

PS: Tenerife significa Montanha Branca – alusão ao Monte Teide, vulcão extinto permanentemente coberto de neve.

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Poesia II

...
"Mas se é espantoso pensar
como tanta coisa sumiu, tantos
guarda-roupas e camas e mucamas
tantas e tantas saias, anáguas,
sapatos dos mais variados modelos
arrastados pelo ar junto com as nuvens,
a isso
responde a manhã
que
com suas muitas e azuis velocidades
segue em frente
alegre e sem memória"
...

Ferreira Gullar

Viver perigosamente V

Carrossel desgovernado

Experimente tomar a direção de um automóvel, afundar o pé no acelerador e dar a volta ao Arco do Triunfo, em Paris.  De preferência várias vezes seguidas.

Dica: aja como se não existissem outros, muitos outros, fazendo o mesmo.

Seu coração vai saltar pela boca, como se você tivesse embarcado numa montanha russa horizontal ou num carrossel desgovernado.

Se servir de alento, anote: não há atropelamentos ou batidas naquela corrida maluca que dura 24 horas por dia, durante todo o ano.

Tempo relativo

Como usamos nosso tempo? Somos governados pelo relógio? Quais as consequências dessa constatação em nossos relacionamentos, em nossos corpos e mentes? Poderíamos optar por alternativas diferentes? 

Essas são algumas questões que afloram do livro A Geography of Time, do psicólogo estadunidense Robert Levine – lamentavelmente sem tradução para o português.

Mas comecemos do princípio. Levine era um psicólogo bem sucedido nos Estados Unidos até ser convidado a dar aulas na Universidade Federal Fluminense, no Rio de Janeiro. A experiência  provocou uma guinada em seus estudos. 

O professor desembarcou no aeroporto do Galeão poucas horas antes da aula inaugural, e sua bagagem não aparecia na esteira indicada. Quando perguntava, aflito, ouvia uma resposta tranquilizadora: aguarde só um minutinho...

O minutinho levou quase uma hora. Levine agarrou a valise, correu para o ponto de táxi, sofreu com o trânsito congestionado, desembarcou na portaria da escola e desembestou pelos corredores para chegar à sala onde já deveria estar a postos. Suava, respirava com dificuldade, e notava que no caminho ultrapassava estudantes caminhando calmamente em direção à mesma sala. Logo descobriu que eram seus alunos, que entravam atrasados sem constrangimento. 

O sentimento de estranheza crescia e agravou-se quando, ao terminar o horário da aula, morto de fome e sono, Levine teve de permanecer em pé, atender alunos, responder questões, refletir sobre problemas interessantes… Ninguém não dava sinal de desejar ir embora!

Levine formulou uma hipótese: o tempo do brasileiro é diferente do tempo do americano. De volta aos Estados Unidos, mobilizou estudantes para promover experimentos em diversas partes do planeta. Eles mediram desde a velocidade média de caminhada de trabalhadores em horário de almoço em avenidas movimentadas, até o tempo despendido para a compra de um selo numa agência de correios, passando pela precisão dos relógios em praças centrais de grandes cidades.

Analisou 43 países. Ao concluir que povos diferentes percebem o tempo de formas diversas, Levine deu o passo seguinte. Comparou a precisão na percepção do tempo com o grau de desenvolvimento das economias. Segundo apurou, os povos mais ricos são os mais atentos ao relógio. 

A questão que ficou: a riqueza implica necessariamente em melhor qualidade de vida? Sim, porque muitos dos povos pesquisados, que sequer têm relógio na praça ou no pulso, têm saúde e alegria... E gozam a vida de maneira calma e contemplativa...

A imagem da ampulheta foi retirada do site historia.pro.br. 
As demais estão disponíveis na página de Robert Levine no site da California State University, Fresno: http://psych.csufresno.edu/levine/

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Monumentos Amazonicos

Era noite de sábado quando o avião aterrissou em Marabá, no Pará, região de garimpo. Empresas mineradoras que extraem riqueza do solo – algumas pagam uma espécie de aluguel para explorar terras indígenas – e uma multidão de migrantes busca de oportunidade de enriquecimento.

Cidade grande. Avenidas, praças largas, muita gente fazendo footing logo no cair da noite – moças com roupas minúsculas, homens com excesso de enfeites. Música com tom caribenho em alto falantes. Indígenas vestidos de cowboys montados em picapes espetaculares.

O hotel era como muitos da Amazônia – o que no sul ou no sudeste do Brasil não passaria de pensão decadente. Piscina com água turva lotada de crianças, adultos, copos, pratos de salgados. Quarto com cama de metal. Banheiro com cheiro de fossa não muito distante.

O recepcionista e o motorista de táxi não compreendem que alguém queira fazer ali um passeio turístico – tipo uma volta por pontos marcantes da cidade. Debates, prós e contras, e conclui-se que para não frustrar o visitante vale uma ida à ponte.

Na margem do rio Tocantins há uma espécie de praça alongada, com bancos e chapéus de sol, para o veraneio. A ponte rodoferroviária atravessa o rio, bastante largo. A construção não chama a atenção – é uma pontona e ponto. Mas na entrada há uma cruz imensa que não passa despercebida. 

O taxista, expert em histórias de horror, as mais comuns por aquelas plagas, explicou.
– Aqui é o marco do massacre dos garimpeiros de Serra Pelada que aconteceu em 1987. Homens, mulheres, crianças, faziam uma manifestação. Pediam caminhões, tratores e a remoção de 8 milhões de metros cúbicos de terra que impediam a garimpagem segura na Serra Pelada. A polícia cercou os dois lados da ponte e atirou. Vários foram fuzilados. Muitos, apavorados, tiraram os sapatos e se jogaram no rio. Como era tempo de seca, o rio estava raso, e todos morreram – de bala ou de queda. Depois, o balanço do número de mortos foi feito com a contagem dos sapatos deixados no asfalto...

Próxima parada na estrada para Parauapebas, em Eldorado de Carajás. Troncos queimados de enormes castanheiras, plantadas à beira do caminho, sinalizam o local do massacre de sem-terra de 1996. Eram cerca de 3.500 famílias. O coronel da Polícia Militar do estado do Pará, Mário Colares Pantoja, responsável pela operação policial, foi condenado a 228 anos de reclusão, cerca de dez anos depois do ocorrido. Mas pediu a nulidade do processo e conseguiu não apenas que fosse nomeado juiz substituto para o caso: responde o processo em liberdade.

Histórias esquecidas.

sábado, 25 de setembro de 2010

Poesia I


“Da primeira vez que me assassinaram
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha...
Depois, de cada vez que me mataram.
Foram levando qualquer coisa minha...”

Mário Quintana

Tesão II

Ele, cabeleireiro. Alto, magro, sarado, sunga com estampa de oncinha. 


Ela, sem profissão, com muitas plásticas no currículo. Desfilava no deck da piscina de biquíni e sapato de salto agulha, com os lábios e as unhas (de pés e mãos) cor de sangue.


Escolheram uma praia deserta no litoral do Rio de Janeiro para comemorar o aniversário de 30 anos de casamento, parceria e cumplicidade incomuns.

A comemoração era mais do que justificável. Aquele havia sido um encontro improvável bem sucedido. Nascidos e criados nas conservadoras Minas Gerais, casaram-se aos 17 anos de idade. Nunca foram muito bem vistos pela vizinhança. Mas resistiram a mexericos e maledicências sem descer do salto alto.

Tesão I

Ah, como ela era apaixonada por ele! Alto, claro, olhos verdes, sabidão, rico, educado... e simpático como poucos. Um achado!
Morena franzina, caipira, semi-analfabeta, Meio índia, meio selvagem, rústica. Ela simplesmente não era capaz de crer que ele a pudesse achar a mais atraente entre as mulheres. 
Os dois formavam um lindo casal, mas ela sentia-se inferiorizada e mordia-se de ciúmes do maridão que não sabia se seria capaz de manter. 
Armou então uma estratégia. Esperava-o todas as noites com as crianças no quarto, adormecidas, o jantar à mesa e... Nua em pelo, pronta para o sexo. Sua ideia era cansar o marido, satisfazê-lo de tal forma, que ele não tivesse energia para procurar aventuras fora de casa.
O truque funcionou por bom tempo, mas um dia ele cansou. Desapareceu.
Veio a depressão. Aos 40 anos de idade ela matriculou-se no ensino elementar de uma escola pública. Era uma figura excêntrica de uniforme e meia soquete no meio da meninada.
Anos depois, filhos criados, uma renca de netos, o marido voltou. Manso. Doce. Apaixonado? Vai saber. Ela abriu a porta, ele entrou e não saiu mais.

Catarata II


Nova York, anos 1980, metrô.
Atrás de grades quadriculadas, como um presidiário, num ambiente mal iluminado, ficava o vendedor dos bilhetes.
No trem, na estação do Harlem, entrou um passageiro branco. Usava terno e gravata. Sapato inteiro. Tinha os cabelos cuidadosamente penteados. Levava um pacote de papel pardo na mão. De pé, no fundo do vagão, fez um discurso mais ou menos assim:

– Senhoras e senhores, meu nome é Joseph Andrew Smith. Tenho 58 anos e trabalhei a vida inteira. Meus filhos estão criados e cuidam de suas vidas. Minha mulher morreu. Perdi emprego, casa, carro. Acho que cumpri minhas obrigações, mas hoje, com muita vergonha, preciso pedir para sobreviver enquanto Deus permitir. Ficarei agradecido se puderem ajudar.

Pronto. Passou pelas pessoas recolhendo moedas.
Anos depois, aquele homem continuava no mesmo trem, com fala e resultados idênticos.

Catarata I


Quando o trânsito parou, a garota encostou-se ao carro velho, sujo, marcado por encontrões em postes, árvores e outros veículos.

– Tia, dá uma moeda, qualquer coisa, aquele chaveiro, o saco plástico...?

A motorista acelerou. Sequer baixou o vidro da janela. Preocupações demais, talvez. Ou a rotina entediante de encontrar sempre as mesmas pessoas, com os mesmos pedidos, sem sinal de mudanças.

Mas no correr daquele dia ocorreu algo incomum. A motorista se deu conta de que olhara para a menina, era capaz de descrevê-la com riqueza de detalhes. A saia amarela e a blusinha cor-de-rosa, ambas muito curtas e encardidas. A sandália de borracha, o cabelo desgrenhado, meio alourado, a mão suja na boca. 

E o olhar. Principalmente o olhar opaco. Era como se a garota – de 12, 15, 17 anos? – tivesse uma lente esbranquiçada colada na íris. Catarata precoce, quem sabe. Brilho não havia – de inteligência, vitalidade, vontade, humor, malandragem. Havia, isso sim, uma centelha de ódio mal disfarçada. 

A névoa nos olhos da motorista, sua própria catarata, começava a se esvanecer. O sentimento: um misto de medo e compaixão.

Escolhas I

- Eu poderia te amar!

Noite escura
Brilho de lágrimas nos olhos suplicantes.

Ela sentiu o frio do medo.
Virou-se e seguiu seu caminho,
sem amor e cercada de perigos,
mas livre do risco da esperança.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Santa ignorância!


Educada, acostumada a ler jornal todos os dias, a discutir política e fazer trabalhos comunitários, embora vivesse numa cidade minúscula aquela senhorinha espevitada tinha uma visão larga do mundo e da vida. Com andar apressado, mas sempre atenta a tudo que se passava ao seu redor, ela dizia, com ar reflexivo:

– Felizes são os ignorantes!

Nada manso

Os paulistas com mais de 50 anos certamente lembram-se do chá da tarde e dos elevadores do prédio do Mappin, plantado na Praça Ramos de Azevedo, diante do Teatro Municipal. Assim como da loja de chapéus Ramenzoni, não muito longe dali. Ou mesmo da Mesbla, que embora tivesse sede no Rio de Janeiro também fez muito sucesso em São Paulo. 

Pois tudo isso desapareceu por obra e arte de um único personagem: Ricardo Mansur. Ele foi retirado da escola aos 19 anos de idade, quando a loja de tecidos de seus pais libaneses foi à falência. Recebeu algum dinheiro para tomar as rédeas de sua vida e abriu uma papelaria, mas não era muito de bater ponto, cuidar de estoque, lidar com contabilidade. Frequentava a turma do Colégio Dante Alighieri e, embora não fosse rico, desfilava num Ford Fairlane importado e fazia sucesso. 

Tornou-se um magnata precoce devido a uma habilidade – sabia comprar empresas cujos donos estavam loucos para se livrar delas, e vendê-las com lucro. Foi assim com as tradicionais lojas de departamento Mesbla e Mappin, e com os chapéus Ramenzoni. Mas estas não foram suas únicas tacadas. Foi dono da Vigor: comprou no longo prazo, nomeou seu irmão como administrador, e saldou os pagamentos com os rendimentos proporcionados pelo negócio. Também arrematou a Leco, outra fábrica de laticínios que acumulava dívidas e brigas entre os sucessores da família proprietária.

Em 1990 fez uma jogada um pouco diferente. Investiu 16 milhões de dólares na montagem de trinta lojas da Pizza Hut, franqueadas da Pepsi Cola. Como as pizzarias fizeram sucesso rapidamente, a Pepsi quis reavê-las. Pagou 30 milhões de dólares e deu a Mansur um lucro de 14 milhões de dólares em pouco mais de dois anos.

Praticante de pólo, ele garante que já disputou uma partida com o príncipe Charles, da Inglaterra – país dos seus sonhos. Seu guarda roupa, bem como os objetos de decoração de seus escritórios e residências, têm etiquetas britânicas. Em geral com estampas de cavalos. 

Grandalhão, Mansur não tem nada de discreto. Suas mãos são como aquelas espátulas de forno de pizzaria. Os cabelos ralos são cuidadosamente colados à cabeça. E as cores dos trajes são combinadas com esmero. Não. Não é exatamente um dandy. Na Hípica Paulista é bastante lembrado o dia em que, depois de uma partida de polo, houve um desentendimento entre Mansur e Arnaldo Diniz (irmão mais novo da família que detinha o controle do grupo Pão de Açúcar), que jogavam em times opostos. Pouco depois os dois se encontraram num restaurante e Mansur quebrou uma garrafa de água mineral na cabeça do adversário. 

De volta aos negócios. Mesbla e Mappin faliram. O Banco Central liquidou o banco de Mansur, o Crefisul. Todos os seus negócios estavam quebrados, mas seu patrimônio pessoal era estimado em meio bilhão de dólares. Mansur era dono de mansões em Londres, no bairro do Morumbi, em São Paulo, e em Indaiatuba, no interior paulista – quase idênticas, em estilo neoclássico. Tudo estava em nome da esposa e dos três filhos quando, acusado de crime contra o sistema financeiro, ele foi preso por 51 dias. Solto, não foi visto no Brasil por vários anos.

Não pense que a novela para por aí. Corriam processos e mais processos na Justiça, e a polícia se mobilizava para localizar os dinheiros de Mansur no Brasil e no exterior, mas ele voltou. Em agosto de 2009, a família Balbo, proprietária da Usina Galo Bravo, de Ribeirão Preto, entregou-lhe seu negócio para que ele conseguisse recursos e saldasse uma dívida estimada em 450 milhões de reais. Pois onze meses depois, ao ser afastado do controle da usina, Mansur deixou uma dívida bem maior: de 2,5 bilhões de reais. Na mesma época, comprou uma destilaria no interior de São Paulo e a Faculdade Batista de Vitória, no Espírito Santo. Tudo foi restituído aos antigos donos e o Tribunal de Justiça de São Paulo suspendeu o bloqueio dos bens de Mansur e de seus familiares.

Antes que essa figura da história empresarial brasileira dê seu próximo bote, o que se sabe é que a rede de lojas Marabraz  adquiriu os direitos sobre a marca Mappin, em leilão público, pela bagatela de 5 milhões de reais, menos da metade do valor estabelecido pela Justiça, pois não havia outros interessados no nome. Nem mesmo Mansur, o bravo, apareceu no leilão.


Há notícias, artigos e reportagens sobre Ricardo Mansur e suas atividades, entre outros, nos seguintes sites: http://www.estadao.com.br, http://epoca.globo.com, http://www.istoedinheiro.com.br, http://veja.abril.com.br, http://oglobo.globo.com.