quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Caldo de Camarões

Longo, curto, com mais ou menos detalhes, um causo com cada título ou várias passagens que componham o quadro de uma pessoa ou um lugar. 
Gente Boa II, a história de Belo, foi reescrita e republicada quatro vezes até que ficasse mais ou menos no jeito. 
Agora, faço a mesma história de duas formas, e ambas ficam no ar. Esta é uma segunda versão de Atleta da Cozinha Mexicana. Escrever é isso. Reformar, reorganizar, repensar, cortar palavras.


Era o melhor caldo de camarões que se poderia provar no México. Quiçá no mundo. Um néctar para duas mulheres sequestradas, presas e incomunicáveis na cidade de Gustavo Diaz Ordaz, no meio do deserto de areias escuras de Sinaloa. Ao menos era assim que nos sentíamos.

O cozinheiro, um homem alto, espigado, com um avental branco improvável naquela cidadezinha, sorria feliz. Nosso deleite era indisfarçável. Repetimos, evidentemente, para saborear de verdade, porque o primeiro prato fora um matambre (embora não fosse churrasco uruguaio...).

Antes, tínhamos até discutido a possibilidade de ir a uma das centenas de barracas de rua que vendem ostras negras enormes, anunciadas em cartazes de papelão, tão famintas estávamos. Mas um rapaz nos explicou que aqueles frutos do mar eram contaminados. E foi ele que nos convidou para jantar no restaurante do tio – o tal que nos servia o maravilhoso caldo de camarões. Era um professor de Educação Física aposentado. Sempre gostara de cozinhar. Montara seu restaurante no quintal de casa, entre vasos de flores e árvores.

Não sabíamos quem era o rapaz. Aliás, nem sabíamos o que fazíamos ali depois do anoitecer. Nosso projeto fora dar um pulo à cidade, visitar uma região de assentamento de agricultores sem-terra, e dar no pé rapidinho. Mas o dia foi passando... E nos vimos sem condução que nos levasse de volta à Cidade do México, sem conhecidos a quem pedir orientação, exaustas depois de muitas andanças e com um calor danado.

Bem, não estávamos sequestradas. O rapaz era um engenheiro agrônomo que vira nossas entrevistas. Também não estávamos presas. Alguém nos levaria ao hotel na capital. Acontece que os mexicanos percebem o tempo de forma diferente dos brasileiros. Algo como a diferença entre britânicos e brasileiros. Pontualidade é um conceito cultural, geográfico, sei lá, é muito variável... Os mexicanos nunca ficam esbaforidos. Se disserem que lhe virão buscar “ahorita, ahorita” prepare-se: pode ser que cheguem num minuto ou... No dia seguinte.

Isso ficou claro logo cedo. Quando desembarcamos na cidade, encontramos o líder de uma cooperativa de agricultores, Emilio Martínez Victoria, um campesino, como se apresentou, que se ofereceu para nos levar ao seu sítio em Fuerte Mayo. Garantiu que era bem pertinho, logo ali. Sacolejamos por mais de uma hora por uma estrada de terra mal batida.

Depois, para Emilio demonstrar o funcionamento do sistema de irrigação que implantara, foi outra novela e meia. Estávamos encantadas, gravávamos e fotografávamos tudo. O sol já começava a se por quando notamos, ao voltarmos à caminhonete, que não seguíamos em direção à cidade: nosso anfitrião resolvera nos presentear com uma subida à serra, para que tivéssemos a dimensão do que é El Carrizo, no vale do Rio Fuerte: uma imensidão de pequenos sítios produtivos. Que paisagem! Ainda mais ao sol poente!

Assim, entre estradas, sítio, deserto, serra e muita conversa, o dia passou.

Amanhecêramos com um susto. Luciana fora ameaçada de prisão porque fotografara crianças na saída de uma escola. Chegou à Prefeitura escoltada por um policial convicto de que pegara uma criminosa em ação. Mas México e Brasil têm lá suas semelhanças: eu já conhecera o prefeito e Emílio, que conversaram com o miliciano... Luciana saiu livre e com suas fotos.

Anoitecêramos numa cidade adormecida. Mas, “ahorita, ahorita”, surgiu outro engenheiro em seu corcel branco que nos levou até a Cidade do México. Um belíssimo chapéu que Luciana havia comprado no correr dessa aventura foi esquecido no banco traseiro da caminhonete. Digamos que ficou na conta do caldo de camarão... Que lamentavelmente não fotografei...

A reportagem resultante dessa viagem foi publicada na Revista Odebrecht Informa e pode ser lida no link
(http://www.odebrechtonline.com.br/materias/00801-00900/883/).

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