segunda-feira, 15 de junho de 2015

Nunca mais diga isso!

Por toda a vida trabalhou noite e dia. Tudo o que ganhou foi para a família, que amava com paixão.
No campo era um líder. Exigente. Que queria ver raça e dava bronca a torto e a direito. Quando acertava um gol era uma festa. O público levantava. Os colegas aplaudiam.

Tempo de viver

A cada 20 minutos um aparelho ligado ao seu braço esquerdo media seus batimentos cardíacos e sua pressão sanguínea. Aquilo duraria 24 horas, inclusive enquanto estivesse dormindo, para comprovar um problema no coração. Não era confortável. Não era agradável. Nem prolongaria sua vida. Uma cirurgia e remédios muito provavelmente provocariam mais efeitos colaterais indesejados do que lhe dariam um pouco mais de qualidade de vida. 

domingo, 24 de maio de 2015

Silêncio musical

Há momentos em que ouvir música é muito bom e outros em que não há nada melhor do que o silêncio.
Pesquisadores da Faculdade de Psicologia da University of Wales Institute debruçaram-se por quase uma década sobre as seguintes questões.

  1. Ouvir música faz bem à saúde mental?
  2. O efeito de ouvir uma música de que a pessoa goste é o mesmo que se verifica quando ela ouve uma música de que não gosta?
  3. É melhor trabalhar ou estudar com música ao fundo ou em ambiente silencioso?

sexta-feira, 22 de maio de 2015

Mar de gelatina

O barco balançava tanto que as pessoas dentro dele mal conseguiam se segurar. Eram jogadas umas contra as outras, contra bancos, paredes. Machucavam-se.
Alguns se deitavam no fundo da embarcação na esperança de que nessa posição fosse mais fácil sobreviver.

quinta-feira, 21 de maio de 2015

Traição

Só quando se viu estatelado no chão foi que ele percebeu.
O movimento da perna do outro havia sido cuidadoso, discreto, imperceptível. Traiçoeiro.

Pegadora voraz

Rica, bonita, empresária bem sucedida.Um problema: é ninfomaníaca.
Tem desejos incontroláveis pelos homens mais improváveis.
Pega altos, baixos, gordos, magros, carecas, cabeludos, zarolhos, intelectuais, semianalfabetos, o que pintar.
Em festas, embaixo de mesas, atrás de cortinas em salas de reunião.
Quando a bandeira começa a ficar muito desfraldada, tira uma temporada fora do país. Férias.

quarta-feira, 20 de maio de 2015

Orgulho e Preconceito

Não. Eu não tenho preconceito. Adoro a diversidade. Sou curiosa. Vivo para aprender novas coisas, pessoas, culturas. Não é brincadeira - eu não tenho preconceitos.
Essa era uma cláusula pétrea da minha constituição até agora há pouco.

terça-feira, 19 de maio de 2015

Paixão além da vida

Esta é uma história de amor de uma vida.
Natália era uma de quatro filhas. Tinha dez irmãos. Nasceu numa vila, na Itália, durante a Primeira Guerra Mundial. Como era muito difícil ganhar dinheiro naquele vilarejo, seu pai tomou um navio em direção ao Brasil. Trabalhava o ano inteiro vendendo lenha, fazendo pão, o que fosse, e a cada doze meses voltava para visitar a mulher e os filhos que deixara na Itália. A rotina era desgastante mas tinha de ser mantida porque, afinal, filhos de italianos tinham de ser italianos. 
Só o risco de ter de viver a experiência de uma nova guerra fez com que as coisas mudassem. Quando Natália, a caçula da turma, completou sete anos de idade, pouco antes do início da Segunda Guerra Mundial, emigraram todos. O Brasil era um país pacífico, os negócios iam bem, e aquela familiona pode se acomodar tranquilamente num enorme casarão em um bairro povoado por compatriotas, na cidade de São Paulo.

segunda-feira, 18 de maio de 2015

Meninas não choram

Era uma menina mimada, nascida na segunda metade do século 20, quando as dificuldades dos tempos de guerra já eram apenas sombras nas lembranças dos mais velhos.
O país entrara numa ciranda de crescimento, o dinheiro era farto, os automóveis já eram acessíveis à classe média. Morava na cidade grande, numa casa assobradada, numa rua arborizada, e todos os seus desejos eram satisfeitos.

Sem tempo

Ai, que não chega nunca. Ai, que nunca me atendem. Ai, que isso não acaba.
Aguinaldo corria, corria, corria, mas não dava conta. Para evitar a agonia de ficar parado no trânsito, preferia caminhar a andar de carro ou de ônibus. Metro, então, nem pensar. E se parasse embaixo da terra?

domingo, 17 de maio de 2015

Eliana Simonetti: Bola de papel

Eliana Simonetti: Bola de papel: Papel amassado no canto da sala. Cadeiras e mesas desarrumadas. No centro, um debate acirrado. Homens vestidos de preto com a cara amarrada...

Bola de papel

Papel amassado no canto da sala. Cadeiras e mesas desarrumadas. No centro, um debate acirrado. Homens vestidos de preto com a cara amarrada. A um ponto, desistem. Levantam-se e saem cada qual por uma porta. 

sábado, 16 de maio de 2015

Parideira

Num recanto perdido no interior de Angola, uma mulher sem idade, atarracada e forte, toda respingada com a terra usada para fazer tijolos de adobe destinados à sua nova casa, me recebeu com um sorriso largo.

Uniglota

- One more blanket, please?
O chinês pronunciava cada sílaba das palavras em inglês pausadamente, com os lábios retesados, num esforço notável para se fazer entender, mas não teve sucesso. Com os olhos arregalados, a aeromoça voltou-se para seu colega, nos fundos da aeronave, e disparou:
- O que é blanket?
- Es  cubrecama. Aqui está el postre. Necessitas leche?
Ela estava lívida. A situação só piorava.

Para ficar esperto

Há alguns anos, jargões de cientistas viraram lugar comum em conversas de botequim, de salão de cabeleireiro, de pátio de escola – efeito estufa, mudanças climáticas, emissões de carbono, tecnologias limpas, boas práticas, volume morto... 
Não sem razão. É só sair de férias para aquela praia de sempre e perceber a alta exagerada da maré, a redução da faixa de areia. Ou ter de vestir casaco e cachecol em plena primavera. 
Impossível ignorar as transformações que ocorrem por todo lado.

quinta-feira, 14 de maio de 2015

A vida no ovo

O apartamento, em uma das áreas mais agitadas e badaladas da cidade, é equipado com janela anti-ruído. Assim é possível estar nele como um surdo, no silêncio.

quarta-feira, 13 de maio de 2015

Viver perigosamente

Ele gostava de ouvir Eric Clapton. Mas gostava mesmo. Ouvia suas músicas o dia inteiro. Assistia shows na TV e, sempre que possível, ao vivo. Sabia que Clapton era um velho comparado aos músicos que seus companheiros de 11 anos de idade curtiam, mas isso não o abalava - era um fã e ponto.
Por causa das músicas, leu a autobiografia do artista. Ficou muito impressionado com a narrativa, com a experiência do seu ídolo. As drogas. A quase morte. A volta ao mundo dos vivos. 
Achou que poderia fazer o mesmo. Viver perigosamente. Montou sua banda. Mergulhou nas drogas. Foi se perdendo sem se dar conta.
Aos 27 anos, como tantos gênios do mundo das artes, morreu.

Deixa pra lá

A água que pingava da torneira do banheiro produzia um ruído surdo, como surda eu me sentia diante daquela torneira - surda e incapaz de fazê-la parar de pingar. Ela marcava o rítmo da minha vida. Acorda, escova os dentes, lava o rosto, aperta bem a torneira. Nada. Ela continua pingando. Troca de roupa. Plim, plim, plim. Hora de vestir o sapato. Plim, plim. Fome. Café na cafeteira. Plim.
Não pense que eu não sei da tal borrachinha que a gente troca com a maior facilidade e se livra desse suplício. Eu já troquei. Como não adiantou, chamei o cara que resolve tudo. Ele trocou novamente, me olhando com ar de superioridade. Virou as costas e... plim, plim, plim... Então comprei uma torneira nova, grande, bonita. Chamei o cara e... plim, plim... ele não veio.
Acho que há coisas com as quais a gente tem de se acostumar. Começo a gostar do plim plim plim... e deixo a torneira pra lá.

terça-feira, 12 de maio de 2015

Porcelana trincada

O primeiro ruído que se ouviu foi o de vidro quebrado, do copo que se estilhaçou no chão. Depois vieram outros, de cadeiras arrastadas, de vozes, muitas vozes. Os sinais não eram nada bons. Algo de desagradável acontecia no andar de cima, no apartamento do andar de cima.

segunda-feira, 11 de maio de 2015

Casal sem cabeça

Ela era canadense. Ele, sérvio. Conheceram-se ao trabalhar para uma empresa brasileira num dos países mais pobres da África, a Libéria, que estava em guerra civil. O casal morava dentro do acampamento das tropas de paz da ONU e, como todos ali, estava proibido de sair sem escolta. Mas desobedecia.

domingo, 10 de maio de 2015

Casamento na terra e no céu

O dia se tornou noite e era ainda mais escuro no interior daquela floresta em que os galhos se entrelaçavam. Eclipse total do sol - casamento de sol e lua no dia no noivado de Luna e Sun.
Não havia sido planejado. Os dois namoravam há cinco anos, resolveram ficar noivos em um impulso, aproveitando o encontro da família no Natal, e para cúmulo da coincidência, os dois, com nomes tão incomuns, uniram-se de fato no céu e na terra no Natal seguinte.
Isso aconteceu num momento especial, daqueles em que os jovens parecem dizer aos mais idosos que não precisam se preocupar - tudo vai ficar como antes, inclusive as tradições mais minúsculas, como o recheio do pastel do ravioli.

sexta-feira, 8 de maio de 2015

O tempo e o espaço

Ah, eu lembro quando essa casa era repleta de gente. Quando as pessoas falavam e riam sem parar, todas ao mesmo tempo. Quando sentavam-se à mesa, mais do que para comer, para comungar, para compartilhar histórias, experiências.
Naquele tempo eu nunca me sentia vazia. Sempre havia quem se acomodasse sobre as minhas pernas, entre os meus braços. Assim nos aquecíamos mutuamente.

Noite de mistério

Se você estivesse ali naquela noite, certamente concordaria comigo. Acreditaria que existem forças para além do nosso entendimento. Admitiria que não temos controle absoluto sobre nosso destino e que o inesperado, o inexplicável, acontece.

quinta-feira, 7 de maio de 2015

Amor de um dia

Maiara caminhava pela rua do porto como quem caminha pelo corredor de casa - estava em seu ambiente, conhecia todas as pedras do caminho, os buracos, os lugares escorregadios. Short curtinho, sandália de salto alto, batom vermelho, cabelos soltos. Queria diversão e sabia que ali encontraria algo.

Janela de oportunidade

O lugar em si não era muito amigável. Não havia plantas, flores, nada colorido. Não havia sons, ruídos que indicassem vida, a existência de homens, animais, insetos, um mosquito que fosse. Era como o nada e ela não sabia como chegara ali.
Lembrava de ter parado num cruzamento. Voltava do trabalho dirigindo seu carro. No rádio, os Rollings Stones cantavam I can get no satisfaction. O trânsito não estava ruim e ela pensava na roupa que vestiria no jantar que havia marcado para mais tarde, com amigos.
Depois ouviu um estrondo. Vidro quebrado. Tudo ficou vermelho. Quando deu por si estava naquele oco, naquele vazio que não era deserto e que de alguma maneira lembrava sua vida no dia a dia. 

quarta-feira, 6 de maio de 2015

Sangue no paraíso

A cidade era uma loucura. Você certamente sabe o que eu quero dizer com isso. Mais carros do que ruas. Mais passageiros do que ônibus. Mais prédios do que casas. E maternidades lotadas.
Ali ela viveu toda a sua vida de quase meio século, até que um dia resolveu virar o jogo, mudar de time, puxar o freio de mão.

Tudo tem seu tempo

O velho de que se fala aqui, é claro, nem sempre foi velho. Teve uma vida muito rica de experiências diversas. E um final inusitado.
Nasceu na montanha, em uma família de professores. Leu, estudou, viajou muito, conheceu inúmeras pessoas de variadas culturas e nacionalidades. Embora seus pais tivessem certeza de que ele seria professor, como todos em sua família, esta ideia não lhe agradou. Ainda jovem tomou as rédeas de seu destino e foi ser aprendiz de carpinteiro em um bairro pobre da sua cidade.

terça-feira, 5 de maio de 2015

Sabedoria ancestral

Maria Aurélia foi diferente de suas amiguinhas desde muito pequena. Gostava de brincar sozinha. Ficava quietinha por muito, muito tempo, observando uma coisa qualquer, uma formiga caminhando ou uma folha de árvore balançada pelo vento. Via coisas que os outros não notavam, como o reflexo do sol na parede, que formava uma letra A perfeita. Quando perdiam algo, logo pediam a Maria Aurélia que procurasse, pois ela encontrava, mesmo que fosse um cisco num carpete.
Era linda, de cabelos escuros e olhos verdes. Talvez por isso, talvez por ter sido sempre muito elogiada, fechou-se em copas. Era tímida no contato com as pessoas. Gostava de plantas e animais. Com esses entendia-se perfeitamente. Cachorros, gatos, pintinhos, todo tipo de bicho se sentia seguro ao lado de Maria Aurélia, que conversava com eles com uma voz muito mansa. Assim, quando ia pela rua, ela nunca estava só. Sempre era acompanhada por uma fileira de animais que brincavam de trançar entre suas pernas.
Com as plantas ela era um pouco mais dura. Mas foi nessa área que sua esquisitisse se revelou milagrosa.

segunda-feira, 4 de maio de 2015

A vaca que late

Centenas, talvez milhares de pessoas tinham olhos, ouvidos, todos os sentidos cravados no palco do Parque do Ibirapuera, em São Paulo, onde Ray Charles tocava e cantava – seu último show no Brasil.

A exceção era uma menininha que viu um dog alemão muito maior do que ela ao seu lado e se encantou. Era uma fêmea de dog arlequim, branco com manchas pretas, comportada e amante da boa música, por assim dizer.
Então, com uma vozinha de soprano histérica a pequena gritou:

_ Mãe! Olha uma vaca!

E a cadela nem ligou.

Pura Maldade

Era um homem bom e gentil. Aliás, Gentil era seu nome. Estava sempre pronto a ajudar, servir, apoiar. Professor, leitor compulsivo, tinha sempre histórias para contar, e todos adoravam ouví-lo. Além disso, distribuía abraços. Apertados, afetivos. Era um caramelo. Um doce de coco. Não havia quem não gostasse de si.
Um dia, sua boina preta de riscas brancas foi encontrada no piso de um estacionamento, em meio a uma enorme poça de sangue. O mar que batia forte na amurada e respingava por todo lado não era capaz de limpar aquela violência.

Leoa à caça

Pela manhã, Maria vestia uma roupa esportiva e se mandava para o parque. Fazia longos exercícios de aquecimento na esperança de que chegasse uma companhia, de preferência um homem jovem, bonito, forte. Claro, nem sempre dava sorte. Nesse caso voltava para casa um tanto frustrada, tomava um banho com água bem quente, vestia seu jeans de todos os dias e ia para a faculdade.
No campus havia muitas possibilidades, muitas áreas de caça. Ela farejava. Alguns dias assistia às aulas, em outros ia para o Centro Acadêmico ou ficava no patio, com um café, fingindo ler alguma coisa.