segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Atleta da cozinha mexicana

O Estado de Sinaloa, no México, é uma região semiárida, na qual a temperatura frequentemente atinge 45ºC e as chuvas são raras. Fica na costa oeste do país, no Golfo da Califórnia. A capital é Culiacán, mas esta não chegamos a ver. O que nos interessava era conhecer os assentamentos de agricultores implantados numa iniciativa de reforma agrária em áreas mais distantes – os mais importantes em El Carrizo, no vale do Rio Fuerte. E foi para lá que Luciana de Francesco e eu seguimos, atrás de uma reportagem que jamais fora publicada no Brasil.

Viajamos de carro até uma cidadezinha próxima, Gustavo Diaz Ordaz. O motorista nos deixou diante do prédio da Prefeitura. Enquanto eu entrava para me apresentar, explicar o que precisava e pedir apoio, Luciana resolveu dar um passeio. Em frente ao prédio estava armada uma feira, prato cheio para uma fotógrafa. Logo ao lado havia uma escola, com meninas uniformizadas sentadas sobre o muro. Luciana fotografou-as...

Logo chegou à Prefeitura, em pânico, acompanhada de um policial. No México, já em 2006, era ilegal abordar crianças... Pior fotografá-las... O índice de sequestro de crianças era muito elevado, e a polícia levava a sério a tarefa de protegê-las. Mas a conversa com o prefeito tinha sido boa, ele falou com o policial, mostramos nossos passaportes e tudo se resolveu.

Dali fomos a uma espécie de Casa do Agricultor, onde engenheiros nos apresentaram a um líder de uma cooperativa de assentados que vivia em El Carrizo desde 1965. Emilio Martínez Victoria, um campesino, como se apresentou, um agricultor familiar de 48 anos de idade, era simpaticíssimo. Logo se prontificou a nos levar para conhecer seu sítio em Fuerte Mayo. E toca entrar novamente numa caminhonete e viajar mais de uma hora em estrada de terra.

O que vimos valeu o esforço. Muita terra plantada com um sistema de irrigação rudimentar, instalado pelos próprios agricultores que cavaram valas do rio aos sítios localizados em areas desérticas, e puseram canos plásticos embocados nessas valas. De tempos em tempos, eles metiam as botas na lama e erguiam ou baixavam os tais canos, para que a água vertesse entre os corredores de mudas. E as plantinhas agradeciam.

A entrevista foi longa, a sessão de fotos também. Mas a gentileza de Emílio superava todas as expectativas. Para que tivéssemos a dimensão do vale do Rio Fuerte, embarcamos novamente e subimos uma infinidade de tempo por uma estrada estreita, chão de pedra, até o ponto mais alto da serra que rodeia o vale. Que visão deslumbrante! Que paisagem! E mais: ali em cima havia muitos daqueles cactos que são típicos do México, e que eu queria porque queria que Luciana fotografasse – em primeiro plano, com o vale ao fundo... Tirana... Ela meteu-se no meio de espinhos, desceu morro, subiu morro, até fazer a foto que eu pedia... E que sequer foi publicada...

Bem, mas o dia chegava ao fim, precisávamos voltar e não tínhamos como. Na Casa do Agricultor não havia ninguém. Porta trancada. Então apareceu um rapaz conversador. Explicou que não precisávamos nos preocupar, as pessoas estariam de volta “ahorita, ahorita” (o que pode significar minutos ou dias...), e nos convidou para jantar.

Haha! Já tínhamos passado o susto com a polícia, andado por charcos, desertos e montanhas, íamos nos meter no carro de um fulano e sair para jantar? Sim. Estávamos mortas de fome. Bom, mas primeiro perguntamos quem era ele. Engenheiro Agrônomo. Trabalhava ali mesmo e nos tinha visto quando chegamos. Acreditamos. Melhor assim.

No carro ele explicou que iríamos ao restaurante de um tio, de um professor. Parecia brincadeira. Não era. Chegamos a uma casinha bonitinha, passamos por um corredor cheio de plantas, e desembocamos num pátio com poucas mesas, em que um senhor alto, magro, bem aprumado, veio nos cumprimentar. Fomos apresentadas como jornalistas brasileiras e nosso anfitrião encomendou “aquele prato”.

– Vocês não estão levando a sério, mas ele é mesmo meu tio, professor aposentado de Educação Física, e faz a melhor sopa de camarões de todo o México!

Ele não mentia. Nos esbaldamos. Depois tomamos carona com outro engenheiro para voltar ao hotel na Cidade do México. Um belíssimo chapéu que Luciana havia comprado no correr dessa aventura ficou esquecido no banco traseiro da caminhonete. Nunca mais soubemos dele. Ficou na conta do caldo de camarão... Que, tão exaustas e aparvalhadas estávamos, nem fotografamos...

A reportagem resultante dessa viagem foi publicada na Revista Odebrecht Informa e pode ser lida no link (http://www.odebrechtonline.com.br/materias/00801-00900/883/).

domingo, 29 de agosto de 2010

Aventura de primeira

Houve um tempo em que para viajar ao exterior, a partir de São Paulo, a única alternativa era Viracopos, próximo a Campinas – aeroporto pequeno e mal ajambrado já naquele tempo, e que atualmente continua tal e qual. Tomava-se um ônibus em Congonhas e chegava-se lá depois de duas horas de viagem – para encarar filas de check-in, da Polícia Federal... Do cafezinho antes do embarque...

Ela formara-se em Geografia e, aos 25 anos, resolvera voar para a Europa. Impulso. Não pensou muito no assunto. Seria uma aventura, e se há alguém que não recusa uma chance de se aventurar é ela.

Bem, já no ônibus estava se desmanchando em lágrimas... Sozinha, de coração partido, querendo bancar o bicho macho, mas meio arrependida.

Seu voo era pela Ibéria. Na fila do check-in, uma senhora de uns 60 anos resolveu puxar conversa... Passar o tempo, digamos. Com sotaque espanhol bem marcado, contou de seus filhos e netos e disse de como era bom voltar à Espanha, à sua terra de que tinha enorme saudade.

A ouvinte, um tanto desatenta, acenou com a cabeça. Até conseguiu esboçar um sorriso. E acabou abrindo a boca para algo mais. Disse que pretendia conhecer a Espanha, onde nascera sua mãe.

A senhora se animou. Sugeriu cidades, passeios, lugares onde ficar... E tudo foi cuidadosamente anotado pela viajante que já não se sentia assim tão disposta a uma aventura aos moldes sem lenço e sem documento.

Depois foi silêncio. Check-in, sala de embarque, fila para subir ao avião. No aperto da classe econômica, olhos vermelhos, fungando... Tanto que uma aeromoça se aproximou e perguntou, na maior gentileza:

– A senhora está bem?

Um sorriso foi a resposta que a aeromoça viu. O que ela não ouviu (ainda bem...) foi o que ia pela cabeça da passageira:

– Claro que não estou bem, sua burra!

O avião levantou voo. Uma hora depois a aeromoça estava de volta, pedindo que ela a acompanhasse à primeira classe.

– Algo errado?

Desta vez, quem sorriu foi a aeromoça. Acontece que ali, muito bem instalada, estava aquela senhora espanhola da fila do check-in, que acenava e sorria com ares de `Seja bem vinda!`.

Jantaram como amigas de longa data. Tomaram uma taça de vinho, foram servidas com toalhas e guardanapos de linho e talheres de prata. Conversa vai, conversa vem, a convidada esqueceu suas tristezas.

Voltou ao seu lugar para dormir, mas logo pela manhã foi novamente chamada para tomar café com a nova amiga, se é possível defini-la assim. Elas tinham falado sobre historia familiar, tinham reconhecido a cultura de uma e de outra... Mas a garota não sabia o motivo de tanta gentileza, o que a senhora fazia da vida... Havia muitas dúvidas não resolvidas.

Ao final da refeição, a senhora ofereceu à companheira de viagem um cartão de visitasc– cartão azul, com borboletas estampadas...

Uau! A curiosidade ficou acesérrima! Pouso em Madrid. Ela não resistiu: perguntou à aeromoça:

– Quem é essa senhora? Parece solitária... Nos conhecemos no aeroporto e ela foi tão gentil durante o voo...

– Não sabe quem é ela? Pois é a embaixatriz da Espanha no Brasil!!!

A aventura começara bem. Muito bem...

Esta é mais uma das histórias de vida da minha amiga Adélia Manus. Ela conta, eu escrevo. São muitas. Imperdíveis. Foi ela a moça de 25 anos que voou aos prantos para a Espanha. Aguardo para saber o que veio depois...

Chic, pero no sabroso






Tínhamos passado semanas perambulando por desertos, matas, vales, montanhas, vilas, cantos e recantos do interior mexicano.

Em nosso último dia na Cidade do México, mal desembarcamos no aeroporto local, resolvemos que merecíamos um jantar decente, em mesa com toalha, com garçom de roupa branca, sem violões aos berros em nossos ouvidos... Coisas assim... Confortos mínimos dos quais andávamos esquecidas.

Fomos ao que era conhecido como o melhor restaurante local, na avenida mais badalada da cidade. Quando o maître deu comigo e com Luciana à porta de entrada, não pode conter uma careta. Estávamos descabeladas, empoeiradas, horrorosas. Mas queríamos ser bem tratadas, nos disseram que aquele era o lugar, e ficaríamos a qualquer custo.

Explicamos que viajávamos há dias, que desejávamos comer muito bem, fomos ao banheiro dar um tapa na aparência, pedimos tequilas – as mais bem servidas entre as que tomamos no México, é preciso reconhecer – e, diante do cardápio variado, solicitamos uma sugestão ao garçom... Com um jeitinho brasileiro que estrangeiro jamais compreenderia:

– Queremos algo que nos faça felizes!

Erro fatal.

Bueno, o prato chegou depois de muuuitas doses de tequila. Mas ainda estávamos sóbrias o bastante para estranhar o que tínhamos diante de nós. Era uma obra de arte, certo. Algo feito com um molho branco, de uma planta nacional, enfeitado com sementes de romãs... E gelado!!!!!

Se o prato tivesse apenas sabor esquisito, até poderíamos ter aguentado. Mas precisávamos de algo quentinho, que afagasse nossas almas... À primeira garfada, não pudemos conter um argh em uníssono...

Luciana estava inconformada, brava mesmo. O restaurante revelara-se chique, mas era só aparência. O atendimento era ruim, o cardápio sofrível e o preço salgadérrimo.
Chamou o maître, deu-lhe um passa-moleque à moda das nossas avós, pagamos as tequilas e saímos.

Poucos metros adiante, havia uma cantina italiana. Resolvemos comer pasta. Sem riscos. Serviço impecável, ótimo vinho, mesas postas à varanda... Tudo isso na mesma badalada Avenida Presidente Masaryk. E baratinho, baratinho.

sábado, 28 de agosto de 2010

Em busca do tempo perdido




Depois de uma semana de insistência finalmente encontramos, encolhida no chão ao canto de uma barraca de feira da Cidade do México, uma senhora de idade indefinida. Falava um idioma incompreensível – e tinha vestidos artesanais, tradicionais da região de Oaxaca.

O estado de Oaxaca é o mais pobre e, paradoxalmente, o que guarda com maior zelo os costumes e a cultura do país. Distante 470 km da capital mexicana, esconde o que existe de mais bonito do interior e do passado.

Frida Kahlo usava trajes típicos do México, composto por diversos povos e civilizações em mais de 3.000 anos de história, como forma de afirmação nacionalista. Lila Dows, outra personalidade e tanto com suas tranças, seus tambores, sua voz – e também seus vestidos e lenços – nasceu em Oaxaca.

Eu estava no México a trabalho, não tinha viagem prevista para aquela área distante, mas como fã de Frida Kahlo e Lila Downs, prometera que não sairia daquela terra sem um paninho bordado que fosse de Oaxaca. E já estava começando a achar que ficaria ali para sempre.

Voltei ao Brasil. O vestido foi encontrado – branco, com fitas vermelhas e bordados – tudo o que eu queria. Iria levar um pedacinho do México para casa. Mas comprá-lo foi uma epopeia. A vendedora não apenas não nos entendia – não fazia esforço para entender, nem sabia escrever números, o preço do produto. Penso que ela nem acreditava que alguém ignorasse a réplica mal feita de uma peça de museu – há de tudo disponível em mil e uma barracas – e fosse atraída por seu vestido de tecido cru. Pode até ter se perguntado: afinal, que turista maluca é essa?

Surgiu, então, sabe-se lá de onde, uma garota espertinha. Falava o idioma indígena da artesã e o espanhol. Mais importante: queria ajudar a senhora a vender, e negociou direitinho. A índia abriu um sorriso largo quando viu o dinheiro – e guardou no fundo do bolso do avental. Eu saí do mercado aos pulos. Vitória!

Aquela viagem fora repleta de aventuras e dificuldades.

Não entenda mal. O México é um lindo país com pessoas instruídas, politizadas, prestativas. As aventuras e dificuldades vieram do trabalho. Eu formava dupla com Luciana de Francesco, grande amiga e também grande fotógrafa. Queríamos histórias e imagens de um México que, descobrimos com o passar dos dias, praticamente já não existe. Andamos, esperamos, nos metemos por campos e cidades do interior.

Até encontramos mariachis. Mas não eram aqueles... Os originais... Menestréis andarilhos que são símbolos do patriotismo e do orgulho mexicanos. Desses praticamente não há mais. O que vimos foram grupos vestidos a caráter, de preto com fitas coloridas e chapelões, além, claro, das indefectíveis guitarras. Mas, ai! Como era árduo ouvi-los!

Entre nossos achados (nesse dia estávamos em El Fuerte, cidade perdida no mapa) houve até um conjunto que se apresentava na companhia de um Zorro fanfarrão, encarregado de fazer rir e dançar turistas – no caso, velhinhos americanos e europeus, que, é preciso admitir, curtiram cada momento.

Se não estou enganada, um humorista, ou um personagem de novela, popularizou um jargão mais ou menos assim: `Cada um cada um`.

É isso.

A reportagem resultante desta viagem foi publicada na revista Odebrecht Informa, e pode ser lida em (http://www.odebrechtonline.com.br/materias/00801-00900/883/)
Não tenho foto da índia que me fez feliz. Lamento. Publico, a título ilustrativo, uma índia retratada por F Keery para o serviço de imprensa da ONU. Fotografei Luciana, a batalhadora, no dia em que chegamos à Cidade do México, ainda sem saber o que nos aguardava, e registrando o Zorro como animador de festa de mariachis em El Fuerte.

No mundo dos sonhos


Lourdes morava em Ocongate, logo nos primeiros quilômetros da estrada que sai de Cuzco e segue até a fronteira do Peru com o Acre, no Brasil. Tinha doze anos em 2007.

Conversadeira, líder de sua turma, falava, explicava, mostrava – a casa, as galinhas, a escola, tudo o que quiséssemos ou não ver.

Estive com ela dois dias seguidos. Na despedida, perguntou se eu voltaria, se a levaria comigo pra longe dali. Expliquei que não podia, que sua mãe ficaria triste.

– Mas por que você quer ir embora?
– Por que eu quero ser médica e rica, morar nos Estados Unidos. Então, se não vai me levar, você me ensina a falar inglês?

Eita! Coração apertado, subi no carro e fui-me embora. Também, com tanto turista americano passando por ali, com os filmes hollywoodianos que assistia, o que Lourdes poderia desejar? Ser professora de quéchua? Guia turística nos Andes? Médica em Lima? Nada! O suprassumo dos seus sonhos era viver na Califórnia!

Foto: Roberto Rosa

Partilha na Pobreza


O frio era de lascar. Estávamos nos Andes, na comuna Puica, mais ou menos 4.000 metros acima do nível do mar. A paisagem era de uma relva rala. No mais eram pedras. Seguíamos pela estrada quando vimos ao longe um garoto encolhido sobre um muro. Paramos.

Ele usava sandálias, como todos por ali. Falava pouco, mas contou que seus irmãos estavam na escola, seu pai plantava batatas (há centenas de espécies delas no Peru) e a mãe estava em casa – uma construção sem janelas, para impedir a entrada do vento. Seu nome: Nelson Ccauana Vargas.

Levávamos pão, bolachas e frutas no carro. Oferecemos a Nelson. Ele segurou e não comeu – embora fosse impossível que não tivesse fome ou vontade de experimentar...

A mãe apareceu. O menino estendeu o pão para ela, que comeu rapidinho. Demos a ele um pacote de bolachas – que também, sem demora, foram parar no estômago da mãe. Chegaram os irmãos, os primos, uma criançada alegre. Só aí o que dávamos ao menino era distribuído entre a molecada – a irmã mais velha no comando do espetáculo.

Nelson, o descobridor da mina, ficava na coxia.

Fomos embora meio compungidos. Difícil entender aquela cultura. Acabamos concluindo que a mãe é a figura principal da família, aquela que tem de ser forte, de sobreviver. É gorda, bem fornida. O pequerrucho, peso pena, se tanto.

Foto: Roberto Rosa

Os Rosa

Foi numa sala avarandada que Gustavo Rosa me recebeu. Lugar claro, aconchegante. Só lamentei que ficasse diante daquela melancia ultrajante que Ruy Ohtake projetou para um hotel na Avenida Brigadeiro Luiz Antonio...

Bom, tem gosto pra tudo. Não sei o que Tomie Ohtake sentiu ou pensou quando viu aquilo... Mas afinal os pais não são responsáveis pelas obras de seus filhos... E a casa de Gustavo Rosa tinha um muro beeeem alto.

A entrevista tinha sido prevista para durar uma hora. Acontece que a conversa era ótima, o chazinho perfumado e saboroso, e logo junto à varanda ficava a sala de trabalho do artista... Eu me deliciei. Falamos sobre as dificuldades da vida de artista, sobre escrever, se expressar... Conforme o tempo ia passando, uma senhorinha invisível absolutamente eficiente trazia suquinhos, biscoitinhos, quitutes diversos...

Alimentei corpo e alma. Cheguei pela manhã e saí ao entardecer. Ganhei uma gravura de Gustavo naquele dia. Uma gordotinha irresistível. Emoldurei, pendurei, guardei a lembrança do encontro, mas não voltei a fazer contato – e ele tampouco.

Anos se passaram. Um dia, fui escalada para ir a Macaé e escrever sobre petróleo. Viagem de madrugada. No Aeroporto Santos Dumont , uma van me aguardava. Dentro, um fotógrafo. Apresentação:

– Roberto Rosa.
– Eliana Simonetti.

Estávamos ambos exaustos e mal-humorados. Fomos secos, naquelas circunstâncias, sem dúvida. A viagem do Rio a Macaé era longa, em estrada ruim – e ainda teríamos de fazer falar as gentes da Petrobras, de conseguir autorização para fotografar instalações... Capítulos à parte, desafiadores, no trabalho.

Não sei bem como aconteceu de começarmos a conversar. Talvez os buracos da estrada tenham nos acordado, nos deixado mais agitados. O fato é que falamos. Soube que Bob é irmão de Gustavo. Que nascera em São Paulo, embora falasse com todos os esssesss e errressss a que um carioca tem direito. Foram mais ou menos duas horas de papo, às vezes mais tristinho, às vezes mais descontraído, em que nos conhecemos bastante.

Bob é o fotógrafo mais ansioso, mais perfeccionista, mais obstinado com quem já trabalhei. Gesticula, fala, sua por todos os poros – tem até toalhinhas da bolsa para secar o rosto, desembaçar a vista e conseguir olhar o cenário, acertar o foco na máquina fotográfica. E toca esperar. Ele só pára quando consegue exatamente o que quer. O sol batendo na florzinha da ponta do galho da árvore, o olhar que diz tudo de uma personagem... Daí então ele grita. Pronto! Vem ver, vem ver!

Não tem erro. Sempre concluo que a espera valeu. Bob é artista, como seu irmão Gustavo.

A reportagem foi feita. E depois houve outras, incontáveis, por toda parte do Brasil e do mundo. Ficamos amigos, meio irmãos. Sem nunca ter visto seus filhos, sei muito sobre eles. Assim como ele sabe dos meus. Quando encontrei sua mulher, nem precisávamos de apresentação: conversa fácil de quem convive há anos.

A história agora é do Rosa fotógrafo. Ocorreu no Peru.

A empreitada era complicada. Passaríamos 15 dias dentro de uma caminhonete, entre Cuzco e a Amazônia, por uma estrada que serpenteava estreita sobre os Andes. No carro ia o motorista, quechuahablante, que me serviu de tradutor e intérprete nas entrevistas com gente do interior. Ia também uma pessoa da Construtora Norberto Odebrecht, que fazia a reforma e a restauração da estrada, encarregada de cuidar para que tudo corresse sem maiores percalços – Samuel, um triatleta obsecado por saúde que, algumas vezes nessas duas semanas, teve de se conformar e comer pratos estranhíssimos, preparados por mãos encardidas. Sofreu, pobrezinho...

O que vimos foi indescritível. O Peru é terra belíssima. Os Andes têm paisagens de tirar o fôlego. Mas 15 dias é tempo demasiado para conviver intensamente. E ficávamos horas e horas confinados aos poucos metros quadrados da cabine da caminhonete...

A viagem chegava ao fim quando, um após outro, fomos nos descontrolando, reclamando, explodindo. Então, fez-se a luz. Afinal, aquilo não era um casamento! Não tínhamos de conviver para sempre, de entender, aceitar, nos adaptar às manias uns dos outros...

Rimos, fizemos as pazes e terminamos o serviço em ótimo astral.

Há várias boas histórias sobre esta viagem. Escrevo dia desses.

Bob é amigo para sempre. Soube que Gustavo, que nunca mais vi, mas é parte da família, não está bem de saúde. Sinto. Muito.

A foto de Roberto Rosa na labuta foi feita por mim - e como não sou fotógrafa, por favor, sejam condescendentes.
As outras imagens da
viagem pelos Andes peruanos, by Bob Rosa, são exemplos do resultado que ele obtém.
Crédito: Roberto Rosa

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Uma lição trabalhosa

No tacho armado sobre o fogo, no pátio atrás da casa, a abóbora borbulhava. Panela enorme mexida com colher de pau de cabo compridíssimo. Uma arte. Não se podia descuidar um momento ou o doce pegava no fundo, escurecia, perdia o brilho e o ponto.

A mãe mexia que mexia, os braços pesados pelo esforço. Filhos, sobrinhos, vizinhos, uma criançada vinda de todos os cantos ficava ali, espreitando, entre curiosa e gulosa, à espera que a delícia ficasse pronta e fosse oferecida a todos.

Então algo forçou a mestre-cuca a se afastar do tacho. Para não correr riscos, ela encarregou uma das garotas, não mais de dez anos de idade, de dar conta do recado: revolver o doce e aprontá-lo.

A incumbência era uma honra. Serviço de gente grande. E a garota, sem pestanejar, tomou o cabo da colher e resolveu olhar o resultado dos seus movimentos – a cabeça pertinho daquele vapor quentíssimo.

– Minha filha, doce a gente mexe com a cabeça, não com a mão!!

A mãe falou e saiu. A garota afastou o rosto do fogo. Mas a frase fazia sentido? Afinal, ela deveria usar a mão para movimentar a colher! E se deixasse a cabeça onde estava, acabaria se queimando! Que história era aquela de mexer o doce com a cabeça e não com a mão?

A audiência se meteu numa discussão danada. Cada um interpretava a lição a seu modo. Até que a nova dona do doce, a menina, explicou com o olhar mais inocente desse mundo:

– O que minha mãe disse é que eu preciso pensar antes de fazer as coisas. Que cabeça serve para pensar – e só depois que eu descobrir a melhor maneira de mexer o doce é que devo pegar a colher e começar a trabalhar...

Muitos dos que ouviam suas palavras, arregalados, eram bem mais velhos do que ela. Mas ou não usavam bem suas cabeças, ou não estavam acostumados à forma de ensinar daquela senhora – que, convenhamos, era incomum.

Houve quem, naquele momento, atinasse com o valor do raciocínio, da reflexão... Eu, que já devia ser sabida, do alto dos meus 15 anos, estava nessa turma. E de lambuja percebi como é fácil aprender com exemplo, com experimentação...

A mestra: minha tia Jael. A garota: minha prima Jussara.

Ah, e o doce ficou perfeito!

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Crise III

Aos 30 anos, por alguma razão inexplicável, já que a expectativa de vida do brasileiro anda pela casa dos 80, a gente tem a sensação de ter atingido metade do tempo que temos disponível. A contabilidade é cruel, porque afinal, até os 15 ou um pouco mais, não decidimos sobre nosso destino. Mas o balanço entre o que foi feito e o que se sonhou, planejou, desejou realizar, sempre fica no vermelho.

Erros, arrependimentos, enganos, privações, prejuízos, perdas de oportunidades... Tudo isso pesa num lado da balança – e quando se pensa em maneiras de arranjar o que saiu errado, de retornar à estação e tomar o trem que passou – a resposta é um não bem redondo. Não há como.

Tempo não tem volta. A vida só se vive uma vez. O que passou, passou... Sabedoria popular é de arrasar.

A crise dos 30 é o momento em que a ficha cai. É preciso olhar pra frente. Escapar da dor e da frustração. Tentar construir algo melhor.

Aí entra em cena o outro prato da balança, onde se põe as intenções mais acalentadas e nutridas para a outra metade da vida, o tempo que resta, por assim dizer.

Não há crise mais solitária. Mais desesperada. Uma tempestade emocional.

Eu tive impulsos de romper com tudo, de sair de mochileira pelo mundo, como a hippie que talvez devesse ter sido quando garota. Conversava com o ascensorista sobre filosofia, enquanto o elevador subia para o escritório onde eu trabalhava (nem preciso dizer que ele não entendia patavina). Fazia reuniões com mulheres que passavam por fases semelhantes.

O clímax aconteceu numa barbearia de subúrbio, onde levava meus filhos para cortar o cabelo. Eu tinha cabelos longos, à cintura. Pedi que o senhorzinho acabasse com eles, passasse máquina 2. Saí dali careca. Em casa, me olhei no espelho e chorei horas seguidas.

Dias depois, furei as orelhas e passei a usar brincos. Tudo doía, mas havia algo novo começando.

Crise II

A idade da alforria. Ah, os 18 anos! Que mito poderoso existe em torno dessa idade! É fazer 18 anos e... Pronto! Carteira de motorista, carro e pé na estrada. Não tem mais pai ou mãe que segurem. Liberdade.

Meu aniversário de 18 anos caiu num dia de semana, dia de treino de ginástica olímpica. Fiquei 4 horas no ginásio, entre o aquecimento e aquele monte de instrumentos, engrossando um pouco mais os calos das mãos e escurecendo minhas manchas roxas prediletas. O treinador era um milico, o nome me foge agora. Tirano total. E eu me submetia às suas ordens na maior alegria. Vá entender!

Quando o treino acabou, um namorado, Chicão, esperava na porta do clube, montado em seu fuscão azul celeste. Eu e Lia, amiga querida, embarcamos para experimentar uma aventura adulta: tomar café no Ibirapuera e dar uma passadinha pelo Oba Oba, a casa de dança das famosas mulatas do Sargentelli.

O plano parecia genial. Tomaríamos um café, daríamos uma olhadinha naquele mundo proibido, e voltaríamos para casa cedinho, a tempo de não provocar discussões. Acontece que Chicão resolveu fazer um caminho por dentro do Parque do Ibirapuera. Estava escuro. Entramos numa contra mão e demos de frente com um Impala, uma barca.

O Impala ficou intacto. O fuscão virou uma lata amassada. E eu, acelerada pela adrenalina do treino e pela perspectiva de nossa peripécia, me joguei contra o para-brisas. Sim, porque naquele tempo não existia cinto de segurança. E sentada no banco da frente do fuscão, com passageiro atrás, eu ficava grudada no vidro...

Fui a única ferida no incidente. Cortei o queixo e os tendões da mão. Alguém me levou a um pronto-socorro próximo. O plantonista sonolento, pediu que eu fechasse a camisa – aberta na esperança de que alguém limpasse os milhares de caquinhos de vidro que espetavam meu colo –, enrolou minha mão numa faixa apertada, entregou a conta a seu Nelson, pai da Lia, que aparecera apavorado, e me despachou.

O quadro era péssimo. Eu tinha sido mal atendida, a conta do hospital era absurdamente alta e impagável, e eu deixava o pronto-socorro sem esperança de um dia recuperar o movimento da mão esquerda. Isso sem falar no pavor de chegar em casa naquele estado... Mas qual foi a única pergunta que fiz ao médico antes de ir embora?

– Eu ainda vou poder tirar carta de motorista?

Crise I

15 anos. Idade do meio. Não mais criança, ainda não adulto. Excesso de sonhos e projetos. Paixões muitas – pelo céu azul do inverno, pelo por do sol do outono, pela imensidão do mar, pelo mistério das matas, pela ingenuidade dos índios, pelo sofrimento dos pobres, por um mundo melhor. A cabeça a mil e o corpo também. Transformações dolorosas. Acne, excesso de peso, nariz grande demais, tudo desproporcional. E um desejo, maior que tudo, de transgredir.

No dia de meu aniversário de 15 anos fui convidada para uma reunião na casa de amigos de um amigo que haviam acabado de chegar, deslumbrados, da Bahia. Eram mais velhos. No apartamento, além de fotos, coquinhos daqueles de comer direto do colar, e bebida, muita bebida.

Não me lembro do que aconteceu ali. Em algum momento, meu bom amigo Luiz Henrique, vizinho, colega de infância, que devia me conhecer melhor do que eu a mim mesma, achou por bem me levar embora.

Tomamos um táxi limpinho, de um motorista velhinho e simpático... E eu vomitei em tudo. Acabei com o carro do homem, com a minha roupa... E ainda perdi os óculos que tinha acabado de mandar fazer, lindinhos, presente de aniversário do meu pai.

Acho que não precisava castigo maior do que a vergonha que passei. Mas meu pai não pensava assim. Os óculos que substituíram aqueles, de que eu tanto gostara, foram escolhidos a dedo, entre os mais ridículos, vagabundos e baratos que havia na prateleira.

Desde meus 15 anos, manter o controle sobre minha consciência se tornou uma obsessão.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Senso de Oportunidade II


Centenas de obras do Barroco Brasileiro estiveram expostas em Paris no final de 1999. A mostra era a primeira comemoração dos 500 anos do Brasil no exterior, integrava o calendário oficial dos festejos do ano 2000 em Paris e também o centenário do Petit Palais – parte de um conjunto monumental composto pelo Grand Palais e pela Ponte Alexandre III, construído em 1900 na zona dos Champs Élysées.

Fui convidada por um dos patrocinadores. Viajei na primeira classe, cercada de celebridades. Quando o avião pousou no aeroporto Charles De Gaulle, a comissária de bordo chamou meu nome ao microfone. Eu deveria aguardar que todos descessem antes de apear da aeronave.

Sobressalto. Haveria algum gravador suspeito na minha bagagem? Será que eu cometera alguma gafe? Nada disso. Meus anfitriões, gentilíssimos, providenciaram não apenas carro com motorista para me levar ao hotel. Cuidaram, também, para que eu não tivesse de ficar na fila, passar por verificação de passaporte, aguardar na esteira de bagagem, enfrentar o controle alfandegário e toda aquela chateação a que os mortais comuns (eu, inclusive) estão habituados.

A comissária postou-se ao meu lado e me convidou a segui-la. Foi então que senti as pernas de um carrapato grudadas na minha pele, sugando meu sangue. Olhei por cima do ombro e vi uma badaladíssima socialite paulista, curadora de museu, ávida por tomar carona na mordomia que me era oferecida. Em segundos ela me tratava como amiga de infância. Sem problemas. A comissária percebeu a situação, disse algumas palavras no rádio e pronto. Demos a volta na multidão, passamos por uma porta de vidro, entramos numa sala onde as malas nos aguardavam, e fomos cada uma para um lado.

A estadia durou uma semana. Um dia, passeando distraída perto da Torre Eiffel, senti alguém tocar meu ombro. Era o carrapato. Perguntou se eu tinha ido a muitos museus, visto muitas exposições. Expliquei que não, que não suporto filas, que sempre que fui a Paris me recusei a subir ao topo da Torre Eiffel ou a visitar o Museu do Louvre: prefiro andar pelas ruas, observar pessoas...

Ela riu.
– Que boba! Como jornalista você fura qualquer fila! Pois eu, como curadora, furo fila e nem pago ingresso! Já estive no Museu d'Orsay, no Centre Georges Pompidou, no Museu Rodin... E ainda pretendo ir a muitos mais!

Eu, hem? Dei a ela os parabéns pelas suas façanhas e me mandei rapidinho. Rica, cara de pau, petulante e oportunista! To fora!

Gente Boa II


Nascido em Vassouras, no Rio de Janeiro, Adalberto Bello tem um sítio, a Quinta Bello, no Rio, onde passa suas temporadas de folga do trabalho. Ali, à sombra das copas das árvores que plantou, anota aventuras em pequenos blocos – rascunhos para o livro de memórias que pretende escrever no futuro. A Quinta também guarda um museu particular, com crachás, passaportes, bandeiras dos países onde esteve.

Bello tem uma enorme coleção de histórias de relacionamentos com culturas, povos, modos de vida diferentes. Em mais de 30 anos de trabalho na Odebrecht, 19 foram passados na África Austral. Depois de Moçambique, da África do Sul, de Botsuana, está em Angola há mais de uma década.

Desde 1998, quando foi enviado a Angola como responsável pelas operações da Unavem, órgão de assistência humanitária da Organização das Nações Unidas, Bello cuida de obras. É maestro de milhares de pessoas. E exigente. No seu pedaço, tudo tem de funcionar de maneira harmônica e afinada, no tempo certo e com alegria. Os que estão sob sua batuta se mostram satisfeitos. Ele é assim, também, quando se envolve em projetos sociais: distribuição de alimentos, construção de escola...

Aqui há uma história que merece ser contada. No início dos anos 2000 a paz ainda não era estável em Angola. Havia um estado de insegurança, uma multidão de gente fora de seu ambiente de origem (os chamados deslocados de guerra), sem esperança e sem absolutamente nada para fazer. Uma área anexa ao canteiro de obras de Luanda Sul, que Bello administrava, encontrava-se sem uso e foi transformada numa fazendinha. Produzia alimentos para os trabalhadores e para doações; e também servia para ensinar gente interessada em trabalhar com agropecuária.

Todos os dias, quando chegava ou saía do trabalho, Bello observava um garoto que vendia quinquilharias na rua. Vítima de paralisia infantil quando ainda era bebê, Artur Guilherme Chambeia, aos 17 anos de idade, tinha dificuldade de locomoção, não sabia ler ou escrever, e era o arrimo de uma família que vivia ao relento: três irmãs e um pai alcoolista.

Bello puxou conversa. Percebeu que Arthur era esperto e trabalhador. Contratou-o. Construiu na fazendinha uma casa com paredes de tijolos e telhado de verdade – coisa rara na Luanda daqueles tempos – para que a família pudesse se acomodar. Sete anos depois, entendido em informática e promovido na empresa, Arthur é um rapaz alto, forte, sorridente, saudável. Quem olha para ele não nota sinal do que experimentou no passado.

Bello constrói, desenha, escreve, administra, faz plantas e pessoas crescerem ao seu redor. É querido. Em 2005, começou a se sentir fraco. Numa viagem ao Brasil, descobriu que tinha pressão alta, seus rins não estavam funcionando, precisaria ser submetido a um transplante e era o 1.600º da fila de espera. Dois angolanos, além de parentes, se ofereceram como doadores. Ele recebeu um rim de seu irmão em fevereiro de 2006. A recuperação deveria ter levado um ano, mas Bello explicou aos médicos que não podia viver longe de Angola e de seu povo. Eles entenderam, e, em outubro, de rim e ânimo novo, Adalberto Bello estava de volta ao trabalho.

Foto: Holanda Cavalcanti
Parte das informações contidas neste texto está em uma reportagem publicada na revista Odebrecht Informa, disponível em http://www.odebrechtonline.com.br/materias/01601-01700/1633/

Rainha de Copas


Definitivamente exótica. Em plenos anos 2000, a moça só vestia cópias de modelitos usados por estrelas de Hollywood do início do século XX, feitas sob encomenda, com o maior esmero, por costureiras. Bolsa combinando com o sapato, tudo na mesma cor do vestido (às vezes no mesmo tecido). E indefectíveis chapéus, com véus, flores, plumas, que permaneciam firmes na cabeça sob o sol ou a chuva, em ambientes fechados ou abertos. Seu ideal de beleza e elegância: Ingrid Bergman.

Figura impossível de ignorar. Especialmente num ambiente de trabalho uniforme, esterilizado, despersonalizado. Sua entrée foi triunfal. Silêncio absoluto. Até os aparelhos de ar condicionado e as impressoras emudeceram.

Ela desfilou impassível. Foi até sua mesa, deixou a bolsinha ao lado, bem à vista, e ligou o computador com a maior naturalidade – como a mostrar que, embora parecesse, não havia se teletransportado de tempos passados: era modernérrima.

Dois dias depois, o chefe avisou a quem de direito:
– Nem vamos falar dos vestidos. Esses podem ficar mais um pouco. Mas chapéu não. Nem pensar. Ninguém vai trabalhar aqui de chapéu na cabeça!

O recado deve ter sido dado. Nunca mais ela foi vista. Moça determinada. Ao menos foi o que se comentou...

Foi como se dissesse:
– Sem chapéu não. Nem pensar. Ninguém decide o que visto quando trabalho!

domingo, 22 de agosto de 2010

Senso de oportunidade I

Conheci ainda jovem, recém-chegado ao Brasil com uma mão na frente e outra atrás, um karateca talentoso, que se tornou campeão reverenciado e dono de uma academia na Avenida Vergueiro, a BUtoku-kan: Takedo Okuda.

Não era um tipo muito sociável. E sua disciplina militar não me atraía. Em todo o caso, estava em todos os lugares, onipresente, enquanto eu treinei karatê.

Os anos passaram. Mais de uma década mais tarde, já trabalhando como jornalista, fui escalada para ir à casa de uma socialyte, uma figura chiquérrima, magérrima, elegantérrima, viajadíssima, que morava numa casa deslumbrante nos Jardins, em São Paulo.

A entrevista era sobre negócios, mas o papo foi rolando, eu tinha de saber alguma coisa sobre sua vida para dar tempero à reportagem, e acabei trombando com algo completamente inesperado.

Minha entrevistada participava de um grupo de meditação, yoga, taichi... Uma mistura que, segundo ela, trazia paz e propiciava a confraternização entre as pessoas. O grupo, seletíssimo, fazia uma hora de exercícios e, ao final, degustava um jantar gourmet regado a vinhos e champanhes. Um luxo total.

Quem era o instrutor, o mestre, que cobrava uma baba pelo serviço e no final filava a boia? Takedo Okuda! Aquele meu velho conhecido!

Dinheiro não é problema


O mote do professor de karatê Juichi Sagara, um dos primeiros vindos do Japão para o Brasil, não tinha lá muito sentido, mas nunca saiu da minha cabeça: “Dinheiro não é problema”, ele dizia – quer a situação tivesse ou não a ver com dinheiro, projetos, o que fosse.


Tinha uma academia no Ipiranga, na Avenida Dom Pedro, do lado oposto ao do Museu. Dava aulas no andar de baixo e morava com a mulher no andar de cima.


Aconteceu que um colega de escola, Jim Sato, começou a treinar karatê – e tanta propaganda fez, que eu e Adélia resolvemos entrar nessa. Mas havia um problema. Visitamos academias e academias, e nenhuma aceitava nossa matrícula: karatê era coisa de homem. Isso até que um baiano karateca, Denílson Caribé, recomendou Sagara. Não que ele fosse exatamente um liberal, mas naquele universo era o melhor que poderíamos almejar.


A conversa com Sagara foi longa, com muitas negociações. Nós éramos adolescentes. Precisamos levar autorização escrita de nossos pais para ingressar naquele mundo masculino. Mas no final as coisas se acertaram. Sagara tornou-se nosso sensei, nosso mestre. Aprendemos e treinamos com ele durante anos.


As aventuras foram tantas que, só elas, dariam um blog inteiro. Fiquemos no básico.
Treinávamos com um bando de marmanjos que tomavam o maior cuidado para não nos machucar – então, fizemos que fizemos, ficamos fortinhas, aprendemos técnicas e mais técnicas, e desafiamos os machões no seu território. Por vezes nos demos bem, em outras nos machucamos. Mas no final dos treinos, roxas, doloridas, encharcadas de suor, sempre estávamos bem felizinhas.


Na academia não havia vestiário feminino. Então usávamos a lavanderia da casa, no andar de cima, tirávamos o quimono ensopado, tomávamos um banho de gato na torneira do tanque, nos aprumávamos e saíamos para a avenida, já noite, para tomar o ônibus – o Fábrica, que dava uma volta e meia por São Paulo antes de nos deixar na Avenida dos Maracatins, no Ibirapuera. De lá, íamos a pé para casa – não sem antes comprar dois pacotes daqueles deliciosos e crocantes biscoitos sembei, tipo biju, que comíamos compulsivamente.


Uma tarde, a mulher de Sagara, que não era de muita conversa, como convém à esposa de um japonês, nos convidou para sentar à sala. Em torno de uma mesinha baixa estavam reunidos alguns dos alunos preferidos de Sensei. Conversavam, riam, contavam histórias. Chegou uma travessa. Filetes de cobra a marinara ou ao vinagrete... E também uma garrafa de pinga, com uma cobra meio desfeita enrolada dentro...


Argh!!


Comemos e bebemos, evidentemente. Não se pode fazer desfeita a um Sensei. Na verdade, o evento era uma honra. E acabamos concluindo que a pinga tinha gosto de cachaça como outra qualquer, e a carne de cobra era como isopor ao vinagrete. Nada demais.


Encontrei com Sensei uma vez, muitos anos depois, num avião, de volta de Brasília. Ele era irmão do lutador e senador Kanji Inoki, que fora convidado para a cerimônia de posse do ex-presidente Fernando Collor de Mello, em 1989 – e tomara uma carona no convite. Sequer conversamos. Hoje, pesquisando, descubro que Sensei Sagara morreu em 2001... Nove anos atrás!!

A foto mostra Sagara como conheci. Adorava um katá. Foi retirada do site ejmas.com.

Guia acidental de turistas


Este caso, como outros que aparecem aqui, foi me enviado por Adélia Manus, amiga de toda uma vida e com aventuras que esse blog está me permitindo conhecer um pouco...

Foi assim. Ela estudava na França. Tinha lá sua vida, seus afazeres, seus amigos. Um dia seu pai ligou pedindo que desse apoio a um casal em lua de mel, filhos de amigos seus, que iria passar uma temporada em Paris.

– Sabe como é, gente que nunca viajou, quer conhecer Paris... Arruma um tempinho para eles...

É preciso dizer que Adélia não é das pessoas mais pacientes do planeta, que tem o pavio curtíssimo, mas vamos lá.

Passados alguns dias o telefone tocou.

– Oi, eu sou fulana, filha de fulano, e soube que você vai ser nossa guia. Estamos no tal hotel, no Quartier Latin. A que hora você pode nos pegar?
– Bem, eu estudo, tenho coisas a fazer, mas podemos nos organizar. Digam: quanto tempo vocês vão estar em Paris? O que querem ver e fazer?

Eles queriam ver tudo: Torre Eiffel, Catedral de Notre Damme, Montmartre, lojas, cafés... Tudo mesmo.

Uma hora depois Adélia estava no hotel. A garota tinha uns 20 anos, ele já passava da casa dos 30 – e faria qualquer coisa para vê-la feliz.

A guia acidental explicou que Paris se conhece a pé e de metrô, e saíram os três a caminhar pelo Quartier Latin, à direita do rio Sena. Quatro quarteirões depois ela queria tomar um táxi. Nada feito. Pediu para tomar um café. Vontade satisfeita, entraram no Jardim de Luxemburgo, um dos parques mais bonitos de Paris, onde fica o Palácio de Médicis, construído no século XVII ao estilo florentino. É passeio sem erro para parisienses e turistas de toda a parte do mundo. Mas não para aquela recém-casada.

Então veio a primeira bomba.
– Quem é esse tal de Luxemburgo?

Adélia bem que tentou explicar:
– A construção foi feita na propriedade de François, Duque de Luxemburgo, que dali comandava seu reino... E o nome permaneceu em sua homenagem.

Logo ficou claro que o caminho era de pedra... Ali não brotava nada... Aridez total entre os neurônios da mocinha... Não sabia nada sobre os Médicis, sobre nobreza, sobre o período medieval, nada sobre nada. Abrir seus olhinhos e promover um mínimo de sinapses seria uma trabalheira sem grandes chances de sucesso.

O dia foi longo. Entre a ignorância e a indiferença, a moça foi caindo num marasmo. Ele, ao contrário, parecia animado, e sugeriu uma visita ao Palácio de Versailles para o dia seguinte. Ok. Viagem de trem.

Três dias em Paris e a moça só se lamentava. Pareceu ter se impressionado com Versailles, mas na volta o silêncio foi sepulcral. Até que, lá pelas tantas, lançou a segunda bomba:

– Todos os passeios vão ser assim?
– Assim como?
– Assim, educativos... Parece que estou num programa de viagem escolar!

Adélia não aguentou. Caiu na gargalhada. Os três desembarcaram do trem na estação de Montparnasse, a guia acidental mostrou ao casal a torre – e onde ficava a loja de departamentos – e se mandou. Virou as costas, seguiu seu caminho, e nunca mais trombou com a dupla. No dia seguinte, ligou para o pai:

– Foi o maior sucesso!!! Lua de mel perfeita!! Acho que os dois adoraram tudo!!

Afinal, como explicar o que acontecera? E para que? O pai ficou feliz, Adélia voltou à sua rotina, o casal fez seu turismo de compras livre de paradas culturais, e pronto.

Castelo de Castela

Houve um tempo, alguns hão de lembrar, em que o Pasquim publicava fotonovelas – paródias daquelas histórias melosas editadas em revistas como a antiga Capricho. Eram divertidas, às vezes surreais, críticas, criativas e sempre inovadoras.

Eu e minha amiga Adélia Manus (já falei dela em outros textos...) escrevemos um texto inspirado nessas novelas do Pasquim. Tínhamos 15 anos de idade e acampávamos numa praia deserta do litoral sul de São Paulo – Guaraú.

Adélia conta que, hoje em dia, Guaraú tem asfalto e trânsito congestionado, condomínios fechados, praia poluída, botecos com pagode todas as noites. No final dos anos 1960 não era assim. Chegar lá era uma aventura e a praia era deserta mesmo.
Fomos para lá acampar com meu pai e um tio. Acampar, entenda-se, não era como é nesses tempos modernos que vivemos. Não havia barracas leves e com isolamento térmico. Os sleepings eram acolchoados de lã forrada com tecido de algodão. Tudo era muito precário.

Os adultos dormiram nos carros. Eu e Adélia estendemos nossos sleepings na areia, ao relento, e ficamos conversando horas a fio.

A noite foi inesquecível. Talvez tenha ocorrido uma chuva de meteoros. O certo é que cansamos de contar as estrelas cadentes quando chegamos à de número 125. E nem nos demos ao trabalho de fazer pedidos – nem havia tanta coisa a pedir...

Amanheceu o dia, todos com fome, percebemos que no morro atrás da praia havia uma casa, um casarão. Escalamos a montanha e chegamos ao que era um restaurante. Um lugar sombrio, deserto, de um casal de alemães que servia carne de caça (não, nada ilegal naquele tempo...). Comemos uma maravilhosa caldeirada de paca ensopada.

O alemão era um homem enorme, de cara fechada, suspeitíssimo. Afinal, havia nazistas fugidos da Alemanha escondidos por todo canto do Brasil. Assim, o restaurante, que por alguma razão apelidamos de Castelo de Castela, se transformou no cenário da nossa novela de mistério, suspense, terror. E a personagem central, claro, era o tal alemão.

Acho que ainda guardo o texto em algum lugar, na bagunça de papeis do meu escritório. Se um dia encontrar, digitalizo e posto aqui.

Barbeiro de indio

Mães. Todos sabem como são. Conhecem tudo, decidem tudo, cuidam de tudo. Inclusive do corte de cabelo dos filhos. Mães são amigas de barbeiros e cabeleireiros. Encomendam o formato que as cabeças das crianças devem ter – e como são elas que pagam pelo serviço, claro, os profissionais obedecem.

Essa história aconteceu lá pelos anos 1960. Era uma turma de garotos, vizinhos de rua, amigos inseparáveis, todos com o cabelo escovinha, como se fossem militares. Isso num tempo de Elvis Presley, de Beatles, em que o bacana era ter cabelo comprido, ou pelo menos um topete... Mas bastava os fios atingirem mais de um centímetro e... Pimba: lá iam eles para a navalha.

Para os meninos, ir à barbearia era um suplício!

Bem, naquela rua morava um casal de velhinhos que tinha um caseiro para cuidar do jardim e de todo tipo de consertos e serviços. O homem, vindo do Amazonas, era um contador de histórias. Sempre que os velhinhos estavam longe, a garotada encostava-se ao muro da casa para ouvi-lo falar, falar, falar... E alimentar fantasias.

Um dia ele revelou que fora barbeiro no Amazonas. Os olhos dos meninos brilharam. Estava ali uma perspectiva de libertação do jugo das mães! Eles estavam prestes a ter seu próprio barbeiro, a ter os cabelos cortados conforme seu gosto!

Par ou ímpar; cara ou coroa; pedra, papel e tesoura; debate vai debate vem; chegaram a um veredicto sobre quem seria o primeiro a experimentar os dotes do manauara. A cobaia seria um dos mais rebeldes da turma, que tinha cabelos encaracolados – sempre mais difíceis de botar na linha.

Tesoura e navalha em mãos, o barbeiro postou uma cadeira em frente ao muro e colocou um pano às costas do garoto. Trabalhou por cerca de 20 minutos e lançou um olhar satisfeito para o resultado. O cliente correu para casa e, diante do espelho, quase teve uma síncope. Estava com cara de índio! O cabelo fora cortado à la Chanel, como se uma tigela tivesse sido posta em sua cabeça para servir de molde!

Nem é preciso dizer que a garotada da rua nunca mais solicitou os serviços de barbeiro do caseiro dos velhinhos. E que, no dia seguinte, o tal menino de cabelo encaracolado correu à antiga barbearia de onde saiu... Adivinhe! Com cabelo escovinha!

sábado, 21 de agosto de 2010

Assalto a uma biblioteca

Com uma visita marcada para uma reunião de trabalho, saí a buscar o endereço pelas ruas do centro de Luanda, em Angola. Não foi muito fácil encontrar o prédio, mas cheguei. Era noite. Portão para a rua. Buracos nas paredes. Homens conversando na calçada. Subi as escadas escuras e dei com uma porta de ferro.

Bati. O dono da casa abriu a fortaleza e eu quase rolei escadas abaixo. Três cachorros enormes, dentes pontiagudos à mostra, rosnavam e latiam descontrolados. Ele se desculpou. Tornou a fechar o bunker, prendeu os cães e me convidou para entrar.

O apartamento era no quinto andar, mas nos últimos meses tinha sido invadido duas vezes por ladrões. Para roubar comida, porque além de livros muito mais não havia. E, pobre do meu anfitrião, eu levei muitos de seus livros...

Gente boa I

Não era uma mulher comum.

Como qualquer garota, cresceu brincando; como outras moças, teve muitas amigas, foi a festas, namorou.

Casou e teve quatro filhos. Marido ausente, trabalhava para manter a casa, educar as crianças, ter um tempinho para conversar com as plantas do jardim, e ainda ajudar vizinhos e conhecidos.

Tentava ensinar filhos e netos com seu exemplo. Nunca foi de passar sermão. Era de fazer. E de conversar manso.

Nunca conheci pessoa melhor. Boa. Mesmo. Maria era seu nome.

Uma vez a vi na rua, cabelos brancos enrolados num coque, saia comprida. Passou por ela um menino sujo, com o nariz escorrendo. Maria segurou a ponta da saia, limpou o rosto do garoto, conversou com ele, os dois sentados no meio fio. Então o menino seguiu para um lado e ela para outro.

Simples rotina.

Carinho Macio

A história é boa, mas requer introdução. Tenha paciência.

Salvador, na Bahia, foi a primeira capital do Brasil, fundada em 1549. Lá se estabeleceram as primeiras plantações de cana-de-açúcar dos colonos portugueses – movidas ao trabalho de escravos trazidos da África.

O tratamento dado aos escravos, como se sabe, era brutal. Muitos fugiam, se embrenhavam nas matas, e se organizavam formando quilombos – palavra que na língua banto significa povoação. Ali moravam, trabalhavam, cultivavam suas tradições e resistiam à opressão dos brancos.

Atualmente, na Bahia, ainda existem cerca de 200 desses quilombos. Em quatro deles os habitantes têm propriedade formal da terra e, portanto, maior segurança. Um deles é o Quilombo Jatimane, comunidade isolada na Mata Atlântica, cerca de 30 km distante do centro da cidade de Nilo Peçanha, ao sul do estado, na Costa do Dendê, um espaço que recentemente foi transformado em Área de Proteção Ambiental.

A tradição conta que a história de Jatimane começou com quatro irmãos escravos – os Rosário. No final do século XVIII, Mané André, Boaventura, Devoto e Honório, fugiram do engenho e embrenharam-se na mata em busca de um abrigo para a construção de um assentamento. Fizeram amizade com um índio de nome Mane, que os levou à área onde foi construído o arraial. Mane criava abelhas jati, para produção de mel, e assim, em sua homenagem, o quilombo foi batizado de Jatimane.

Isso é passado. Hoje Jatimane é como uma foto bucólica. Tem mais ou menos 100 casinhas e uma igrejinha com uma única torre cujo sino avisa o início da missa. Fica numa região belíssima, com praias, rios e cachoeiras. É passagem obrigatória para a praia deserta de Pratigi, mas isso é coisa para turista. O transporte público que liga Jatimane a Nilo Peçanha, ao comércio, às escolas, aos postos de saúde, só passa uma vez ao dia. A comunidade sobrevive basicamente da pesca, da produção de farinha de mandioca e da extração da piaçava.

Este causo diz respeito justamente à relação dos quilombolas de Jatimane com a piaçava, planta nativa da região. Os homens colhem. Cabe às mulheres a tarefa de separar as fibras da fita que as envolve usando uma escova de pregos. A empreitada, pesada, é feita da mesma maneira há séculos, ensinada de geração a geração, assim como a história, a música e os costumes.

Durante muitos anos, gente de projetos como o Programa de Desenvolvimento Integrado e Sustentável do Baixo Sul da Bahia, interessada em melhorar as condições de vida dos quilombolas, tentou aproximar-se do povo de Jatimane. Nada fácil. Mas um belo dia surgiu ocasião para uma conversa informal, desinteressada, alegre, com as mulheres que, sentadas no terreiro, lidavam com fibras de piaçava. Papo vai, papo vem, fala-se em fazer algo além de vassouras, na trabalheira que dá separar as fibras... E uma das quilombolas, com ar desolado, confessa:

– O pior não é que ganhamos pouco, que trabalhamos muito, que não nos dão valor. Pior mesmo é que essas escovas de pregos deixam nossas mãos cheias de calos. Mãos assim não servem para acarinhar... Daí, nossos homens pegam o ônibus e vão pra cidade, buscar mocinhas de pele macia...

Ah, que achado! Melhorar a vida daquela gente não era um bicho de sete cabeças! Primeiro, um creminho básico. Depois, a Escola Superior de Desenvolvimento Industrial da Universidade Estadual do Rio de Janeiro desenvolveu novas escovas, leves e eficientes, que não provocam calosidades, dão maior produtividade ao trabalho e, mais importante, contribuem para a felicidade dos casamentos em Jatimane!

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Batalha dos Sexos I

A cidade, ainda pequena hoje em dia, nos anos 1970 era minúscula. As mulheres, que raramente são levadas a sério, naquele tempo sequer eram ouvidas. Especialmente mães e avós, com crianças pequenas, dispostas a viver intensamente, aventurosamente, perigosamente, livremente, criativamente.

Estávamos em Pariquera-Açu, no Vale do Ribeira, em São Paulo. Não muito longe dali, em Cananeia, passava um barco que levava gente e suprimentos para vilas de pescadores numa rota que terminava no porto de Paranaguá, no Paraná. Não era barco de turismo. Carregava galinhas, cabras, ensacados de grãos, homens, mulheres, crianças... O que coubesse, na verdade. Partia de madrugada e, se tudo corresse bem, chegava a Paranaguá por volta da hora do almoço.

Quem estava em Pariquera? Minha avó de mais de 70 anos, que havia sido professora, diretora de escola e vereadora (a primeira eleita pelo MDB em todo o país quando a ditadura militar permitiu eleições legislativas nos municípios); minha tia, também professora e diretora de escola; e duas de suas amigas, uma assistente social e outra... Bem, o que lembro é que era esposa de um delegado de Santos... Uma autoridade, portanto.

A temporada era de férias. Isso quer dizer que as crianças da família que viviam em São Paulo, mais amigos e agregados, haviam sido despachados para Pariquera – para dar sossego aos pais e também para experimentar um ambiente mais livre e natural. Entenda-se – as mulheres pariquerenses da família absolutamente não tinham descanso, ao contrário, tinham trabalho e preocupações redobrados: além de seus próprios filhos, alimentavam, ocupavam e pastoreavam mais de dez criaturas com idades variando entre os três e os 15 anos.

É preciso dizer que elas eram fortes e trabalhadeiras. Que viviam numa sociedade conservadora. E que mesmo assim eram imaginativas, curiosas e corajosas. Um belo dia, enfrentaram uma convenção de maridos e irmãos improvisada na sala da vovó e atacaram mais ou menos assim:

– Vamos tomar o barco, descer o valo, entrar em mar aberto, desembarcar em Paranaguá, pegar o trem que sobe a serra para Curitiba e, de lá, tomamos um ônibus de volta a Pariquera. Se vocês vierem, bem. Se não, vamos do mesmo jeito.

Os machos argumentaram. Elas não tinham dinheiro. As crianças eram muitas, algumas pequeninas, e a responsabilidade de viajar com os filhos dos outros era enorme. Havia o risco de o barco afundar. A maldade do mundo. Mulher não anda desprotegida por aí...

Nada adiantou. Elas estavam mesmo decididas. Os preparativos foram feitos num único dia. Um farnel com frutas, frango frito farofado, pão e água. Reunidas, as crianças ouviram uma explicação rapidinha sobre o que iria acontecer – e como se esperava que elas se comportassem. E lá partiu o grupo, mais ou menos 20 pessoas. O barco atrasou um pouco, mas chegou. A bordo, todos encontraram cantinhos para se acomodar entre caixas, redes, sacolas.

Havia muitos passageiros locais, gente que dependia do barco para abastecer a casa, já que não havia estrada para aquelas bandas do país. Havia também uma moçada que tocava violão, cantava, contava histórias, falava de astrologia, Zaratustra e sabe-se lá o que mais.

A paisagem era linda, com pássaros coloridos agitando os galhos das árvores, nuvens formando figuras variadas... Tudo de bom. Até que o barco topou com um banco de areia. E ficou encalhado por mais de dez horas. A fome bateu, a noite começou a cair... E quem estava preparado para aquelas emergências? Apenas aquelas senhoras que deixaram suas casas a despeito dos reclamos de seus maridos, claro! Elas dividiram agasalhos com quem precisava. E quando a lata com o frango farofado foi destampada... Os passageiros pareciam gafanhotos num campo de trigo. Trituraram até os ossos!

Finalmente, noite alta, o barco atracou em Paranaguá. Pensávamos que poderíamos dormir no convés, mas nada – o capitão foi categórico e mandou para fora idosos, adultos, jovens, crianças, todos enfim. Aí começou novo capítulo. Onde acomodar aquela turma? Era tarde e não havia dinheiro!

Os detalhes do que veio a seguir eu jamais fiquei sabendo. Ficamos aguardando no porto enquanto os adultos saíam em embaixada. Voltaram em uma Kombi da prefeitura que nos levou a um hotel, onde além de cama macia nos aguardava um jantar quentinho. No dia seguinte, pela manhã, a Kombi estava lá novamente, e nos levou para conhecer a cidade e o porto. O maior luxo. E ainda aparecemos na primeira página do jornal da cidade, com foto e tudo: Estudantes de Pariquera-Açu visitam Paranaguá!


Tomamos o trem que sobe a serra para Curitiba, sobre trilhos importados da Inglaterra na época do Império. Passeamos pela cidade, com direito a um sorvete cada um, além da passagem de ônibus. E retornamos a Pariquera sãos e salvos. Sem um tostão no bolso, mas com a alma repleta de emoções e o prazer indescritível de encontrar pais e avós na praça da matriz, olhares pasmos, definitivamente capitulados: suas mulheres eram mesmo sensacionais.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Brazilian hair: the best one!

África do Sul, 2009.
Mais precisamente, aeroporto de Johanesburg. Aquela largueza de espaços abertos e vidros. Aquela multidão de gente chegando e partindo de todo o canto do mundo. Estou numa escala. Horas de espera antes do embarque. Encontro um lugar estratégico, uma mesinha simpática de um café que fica bem no meio de um corredor... De um cruzamento de corredores, na verdade. Naquela ala do aeroporto, naquela posição, não há o que aconteça que fuja aos meus olhos.


O desfile é sensacional. Alguns apressados, outros contemplativos. Uns até leem enquanto andam. Há os que seguem sozinhos, mas a maioria anda em bandos, em grupos de afinidade, por assim dizer. Judeus ortodoxos rezam e balançam os corpos, voltados para uma janelona, para a pista e os aviões. Muçulmanos de turbantes e túnicas passam em silêncio. Há os japoneses de terno e gravata, portando pastas 007, e logo atrás japonesas vestidas com quimonos tradicionais, multicoloridos. Padres franciscanos com beca marrom, corda na cintura e a indefectível sandália. Budistas de branco. Indianos com suas mulheres com chales de cores fortes. Americanos de rostos vermelhos, com dois metros de altura e outros dois de largura, como jogadores de rugby vestidos para uma partida – mas os ombros são naturais. Brasileiros barulhentos – nisseis, sanseis, mulheres, homens, crianças – chegados de uma estadia de trabalho no Japão, carregados de produtos eletrônicos e loucos para voltar ao Brasil. Gente esquelética e obesa. Moços e velhos. Casais com jeito de lua de mel e outros que mal se falavam. Ah! E os Quakers! Daqueles que a gente só vê em filmes! Eles também estavam no aeroporto – um grupo de uns 30, entre homens mulheres e crianças, com trajes do século XVII! Formavam um espetáculo à parte. Todos de preto. De um lado mulheres de cabelos presos e saias longas com os filhos (muitos), de outro os homens, como que montando guarda.


Bom, eu vi muito mais naquele tempo, enquanto comia um bolinho com um copo de leite. A globalização concreta, real. As diferenças eram notáveis, mas também eram impressionantes as semelhanças. Malas? Ah, se não tivessem o nome numa etiqueta ninguém reconheceria a sua – todas pretas ou vermelhas, com rodinhas. Ou conjuntos de marcas famosas, com grife estampada, para que não restassem dúvidas sobre o poder aquisitivo do viajante. Não havia uma só pessoa sem um laptop e um aparelho de telefone celular. Uma só criança sem um videogame (exceto as da turma dos Quakers, que não tinham boneca, carrinho, brinquedo algum).


Foi então que resolvi andar, e encontrei um grupo de africanas. Todas de camiseta verde. Lindas, sorridentes, pajeadas por um homem que, em inglês, dizia a elas o que deviam fazer e não permitia que se afastassem. Entre elas, uma chamou minha atenção. Tinha um penteado muito especial. As tranças coladas na cabeça e, no alto, uma espécie de penacho, um cacho de cabelo esvoaçante. Parecia um desses pássaros raros, que quando vemos ficamos paralisados. Eu fiquei. Não resisti e fui conversar com ela. O grupo ia para uma convenção de vendedoras de produtos de beleza (por favor, não peça que eu lembre a marca...). Elas eram sul-africanas, mas se encontrariam com gente de todo o continente.


A conversa era boa, a moça era receptiva, e eu arrisquei ir além. Elogiei o penteado. Perguntei como aquilo não desmontava à noite, no travesseiro. Resposta óbvia: ela dormia de touca. E para lavar? Com muito cuidado, uma vez por semana. De quanto em quanto tempo o penteado tem de ser refeito? Uma vez por mês ela passava cinco horas no cabeleireiro. Pedi para tocar na sua cabeça. Ela deixou. O penacho era mesmo como uma pluma, macio, leve, soltinho... Qual o truque para ter aquele cabelo assim? Simples: era um aplique. “It`s made with Brazilian hair! The best one!”.


A conversa terminou ali. Eu acabara de descobrir que o Brasil exporta cabelo para a África! Podia querer mais?