sábado, 14 de agosto de 2010

Tortura em férias

A viagem começava com 20 dias em um navio – um cruzeiro de travessia do Atlântico, entre o Brasil e a Europa. Desembarcando na Itália, o médico; sua mulher, uma enfermeira grávida de três meses; e o filho de três anos; iriam a Paris antes de tomar um voo de volta para São Paulo. Eram as primeiras férias da família, planejadas com um ano de antecedência. Mas a jornada estava fora de tempo. Já seria uma empreitada de porte para mulheres não grávidas, para casais sem filhos, para duplas que se entendessem bem. Naquele caso, era um desatino. Ela enjoava todos os dias. Os dois brigavam por causa da cor da roupa que vestiam, do prato que pediam no restaurante, do que iriam ver nos pontos de parada do navio.

A personagem central desse drama, entretanto, é o garoto. Esperto, inteligente, brincalhão, ele foi o alvo do desequilíbrio dos pais. O espetáculo tinha como cenário preferencial o restaurante. Ali, no final da tarde, centenas de passageiros se reuniam para jantar vestidos de gala, como se estivessem em um navio dos anos 1950, um Titanic, digamos. Música ao vivo, conversas sussurradas nos mais variados idiomas, cardápios com primeiro, segundo, terceiro pratos e sobremesa... Além de visitas eventuais do capitão da nau, em seu uniforme impecável.

As mesas não ficavam muito distantes umas das outras. Nos primeiros dias, a família em questão esteve isolada, numa mesinha posta atrás de uma pilastra. Mas como a ansiedade da mulher por conversar fosse indisfarçável, a criança não conseguisse estar sentada por muito tempo, e o marido mostrasse uma timidez e um constrangimento perturbadores, logo os três foram convidados a se juntarem a outros brasileiros – estes em ritmo de festa, comemorando casamento, aniversário, novos rumos na vida.

Então as cortinas se abriram. Na mesa maior, a alegria foi substituída por um estado de tensão permanente. Em silêncio, todos se concentravam em observar os recém-chegados. Houvesse ali um quadrinista, certamente comporia uma história com argumento e figuras de terror. Da boca da mulher, com os lábios inchados, jorravam reclamações torrenciais – e ai de quem ousasse interrompê-la! O marido, obeso, com a camisa sempre empapada de suor, comia sem parar, sem mastigar, e empurrava tudo para dentro com latas e mais latas de refrigerante. E o garoto...

Comia bem? Tomava tapas na cara.
– Você não tem educação? Parece um morto de fome!

Não queria comer? Lá vinha uma saraivada de cotoveladas mal disfarçadas na barriga, nas costelas, onde o cotovelo da mãe alcançasse.
– Você vai morrer! Vai ficar fraco e morrer roxo! Come ou eu te jogo no mar pros tubarões moerem seus ossos!

Brincava na mesa do jantar? Na noite seguinte era trazido no colo, sedado, apagado.
Ficava parado e mudo como uma estátua? Ah, imediatamente os pais mexiam com ele, cutucavam, apertavam sua cabeça, até que ele reagisse, corresse, e então apanhasse por estar aprontando.

Não havia comportamento do filho que agradasse a dupla. Inclusive no camarote particular da família. A qualquer hora do dia ou da noite, quem passasse pelo corredor ouvia som de gritos e choro.

Italianos, alemães, suíços, belgas e principalmente brasileiros, presenciaram a criança ser torturada – e não disseram palavra. Alguém poderá argumentar que, afinal, ninguém tinha nada a ver com o assunto, que todos têm problemas, ou algo do gênero. Que privacidade deve ser respeitada.

O fato é que um dia, já no final do cruzeiro, alguém se indignou e a água entornou. Uma mãe sensível resolveu intervir. Conversou com a enfermeira, dizendo que como pessoa bem informada, ela deveria saber que não se pode agir com crianças como ela vinha fazendo com seu filho. Que o passeio deveria ser divertido para todos. Que o menino não podia arcar com o peso dos problemas que seus pais, adultos, não eram capazes de resolver... Ofereceu ajuda, enfim.

Resultado: o casal desapareceu. Pai, mãe e filho não jantaram mais no restaurante. Não foram vistos no desembarque ou nas ruas de Veneza. Chegaram a Paris? O menino subiu ao topo da Torre Eiffel, como sonhava? Retornaram sãos e salvos? Sabe-se lá. De todo modo, para este garotinho, como para tantos outros, a lei que proíbe castigos físicos em crianças já vem tarde.

2 comentários:

  1. Pois saímos do navio sem querer nem pensar no assunto... Na verdade, fizemos uma força enorme pra esquecer aquela malfadada experiência... Só consegui escrever sobre ela seis meses depois...

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