quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Gente que late e morde

Moscou no final do período Ieltsin – ele doente, ausente; a Rússia meio que sem rumo na economia e na política; as pessoas com uma saudade indisfarçável do autoritarismo, do comunismo, da estabilidade confortável das filas para abastecer a casa; de não ter de mostrar competência para ganhar o pão de cada dia.

Na Rússia, naquele tempo, se percebia claramente o que é um povo com uma história milenar de repressão, de desliberdade, de falta de opção. Foi assim com os czares e depois, com raros intervalos, durante o comunismo.

Semáforo? Esqueça. Acelere e passe se tiver espaço e coragem. Se for pedestre, feche os olhos e siga em frente. Chegando ao outro lado da pista, à calçada, comemore.
Ficou com fome durante suas andanças? Sim, havia portas com placas de restaurante e padaria (em cirílico, porque o alfabeto arábico ainda não havia estreado por ali) – mas entre entrar e ser atendido passavam-se minutos, às vezes horas. Não que não houvesse atendentes. Eles existiam, e até olhavam para os intrusos, mas simplesmente não se moviam. Alternativa mais fácil para matar a fome era o MacDonalds, pertinho do Kremlin. Mas as filas... Ah, as filas davam voltas em quarteirões... E os atendentes nunca entendiam os pedidos – entregavam aos cliente o que estava à mão, gostassem eles ou não.

Museus, exposições de arte, espetáculos de teatro? Muitos. Era difícil escolher. Especialmente porque só se pode permanecer em Moscou por cinco dias – a população da cidade é controlada – e nesse espaço de tempo não dá mesmo pra ver muita coisa. Então, depois de escolher, era preciso chegar ao local – o que, afinal, não era assim tão complicado, porque os metrôs moscovitas são magníficos e funcionam às mil maravilhas. Daí restava enfrentar a fila. Invariavelmente imensa. Como se toda a população russa tivesse feito a mesma escolha que você.

A descoberta decorrente da experiência foi interessante. Fila, em Moscou, é pra brasileiro, ingles, portugues, estrangeiro ver. Se você ficasse no seu lugar, esperando andar passo a passo até o guichê dos ingressos, não sairia da portaria. Volta e meia alguém metia um cotovelo na sua costela e passava à sua frente. Ou falava grosso e te deixava pra trás.

Isso valia para várias situações. Os russos adoram um corpo a corpo. E latem. Quem late mais grosso ganha a parada. Resultado: aquela turista educadinha, dócil, de repente se torna brutal. Late, grita, pisa no pé de qualquer senhorinha mais safada.

Foi assim que consegui que meus filhos comessem boas refeições em restaurantes, que víssemos as peças expostas na galeria estatal Tetyakov, que comprássemos bugigangas na legendária Rua Arbat, e até que assistíssemos ao desfile de limusines diante do restaurante que costumava ser frequentado por Stalin, de preços proibitivos.

Foi assim também que me livrei de um sujeito asqueroso quando estávamos de partida, numa escala entre Praga, Moscou e São Paulo, e tivemos de passar uma noite num hotel infecto ao qual fomos forçados a chegar, de malas em punho, no meio da noite.

Estávamos na calçada de uma avenida larga. Éramos cinco: eu e quatro filhos, as mais novas, gêmeas, com cerca de nove anos de idade. Caminhávamos em fila. De repente, longe do meio fio, mas bem perto do nosso grupo, estaciona um Lada caindo aos pedaços. Dele desce um homem trôpego, com a boca cheia de dentes de ouro. Anda em direção a uma das meninas e fala sem parar, apontando para o carro.

Sem pensar duas vezes, corri e lati, dentes à mostra como um vampiro de filme de terror.
– NIET! NIET!
Os olhos do homem mostraram espanto e medo. Ele baixou a cabeça e partiu.

No dia seguinte chegamos cedo ao aeroporto e nos plantamos diante da porta de embarque. Quem quis passar à frente foi sutilmente desestimulado. O truque de lidar com aquela gente tinha sido aprendido, definitivamente. Sorte. Houve overbooking e 14 passageiros ficaram – não na cidade de Moscou, mas retidos no aeroporto, até que outro avião com destino à América Latina os resgatasse.

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