domingo, 15 de agosto de 2010

História do passado no presente

Salvador, Bahia, 1975 ou 1976.
Uma cidade ainda sem avenidas largas. Sem trânsito exagerado de carros e ônibus, sem buzinas. Sem hotéis com campos de golfe. Sem shopping centers. Praias de areia branca. Barracas e cabeludos falando de amor sob os coqueiros de Itapoã.
Uma gente com tempo pra trabalhar, passear, apreciar paisagens, bebemorar, curtir amigos antigos e de passagem.

Num apartamento amplo, arejado, claro, num bairro bacana, morava um advogado escritor e atleta. Negão daqueles que povoam os sonhos de adolescentes branquinhas de classe média. Grande, forte, bem humorado, inteligente. Com protetor solar e chapéu, ele ia à praia todos os dias. Tinha uma academia e, às noites, dava aulas de ginástica e esportes. No intervalo, de terno e gravata, ia ao fórum, recebia clientes em seu escritório, estudava processos. Em algum momento, escrevia artigos publicados num jornal soteropolitano de grande circulação. E, para completar, ainda liderava um bloco carnavalesco.

Esse sujeito plural dividia o tal apartamento envidraçado com sua mãe, uma senhorinha gentil que vivia de olhos baixos, andava arrastando os pés e... maravilha das maravilhas, era cozinheira de mancheia.

Três vezes ao dia Dona Zefinha servia mesa farta e retirava-se para a cozinha. Num canto, sozinha, comia à moda antiga, jogando a comida à boca com as mãos.

Seu filho doutor chegava sem dizer palavra. Acomodava-se à mesa e, se sentia falta de algo, erguia os braços e batia palmas – duas vezes, não mais.
Dona Zefinha largava tudo. Corria para a sala, olhos postos no chão, e ouvia.
– Água de coco!
Sem por favor, nem obrigado.
A jarra com água de coco geladinha surgia à mesa como num passe de mágica.

O terno, a gravata, a camisa, impecavelmente limpos e passados, já esperavam sobre a cama. Para isso as palmas eram desnecessárias. Ele tomava seu banho, se aprumava, e saía. Quando a porta batia, quem estivesse a observar aquele ritual até assustava ao escutar:
– Bença, mãe!

Ela analfabeta, ele doutor. Ela humilde, ele bem sucedido. Ela mulata, ele negro. Ela servil, ele senhor. Entendimento sem par. Viviam, em plenos anos de revolução cultural e de costumes, como se estivessem no século XVIII.

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