A cidade, ainda pequena hoje em dia, nos anos 1970 era minúscula. As mulheres, que raramente são levadas a sério, naquele tempo sequer eram ouvidas. Especialmente mães e avós, com crianças pequenas, dispostas a viver intensamente, aventurosamente, perigosamente, livremente, criativamente.
Estávamos em Pariquera-Açu, no Vale do Ribeira, em São Paulo. Não muito longe dali, em Cananeia, passava um barco que levava gente e suprimentos para vilas de pescadores numa rota que terminava no porto de Paranaguá, no Paraná. Não era barco de turismo. Carregava galinhas, cabras, ensacados de grãos, homens, mulheres, crianças... O que coubesse, na verdade. Partia de madrugada e, se tudo corresse bem, chegava a Paranaguá por volta da hora do almoço.
Quem estava em Pariquera? Minha avó de mais de 70 anos, que havia sido professora, diretora de escola e vereadora (a primeira eleita pelo MDB em todo o país quando a ditadura militar permitiu eleições legislativas nos municípios); minha tia, também professora e diretora de escola; e duas de suas amigas, uma assistente social e outra... Bem, o que lembro é que era esposa de um delegado de Santos... Uma autoridade, portanto.
A temporada era de férias. Isso quer dizer que as crianças da família que viviam em São Paulo, mais amigos e agregados, haviam sido despachados para Pariquera – para dar sossego aos pais e também para experimentar um ambiente mais livre e natural. Entenda-se – as mulheres pariquerenses da família absolutamente não tinham descanso, ao contrário, tinham trabalho e preocupações redobrados: além de seus próprios filhos, alimentavam, ocupavam e pastoreavam mais de dez criaturas com idades variando entre os três e os 15 anos.
É preciso dizer que elas eram fortes e trabalhadeiras. Que viviam numa sociedade conservadora. E que mesmo assim eram imaginativas, curiosas e corajosas. Um belo dia, enfrentaram uma convenção de maridos e irmãos improvisada na sala da vovó e atacaram mais ou menos assim:
– Vamos tomar o barco, descer o valo, entrar em mar aberto, desembarcar em Paranaguá, pegar o trem que sobe a serra para Curitiba e, de lá, tomamos um ônibus de volta a Pariquera. Se vocês vierem, bem. Se não, vamos do mesmo jeito.
Os machos argumentaram. Elas não tinham dinheiro. As crianças eram muitas, algumas pequeninas, e a responsabilidade de viajar com os filhos dos outros era enorme. Havia o risco de o barco afundar. A maldade do mundo. Mulher não anda desprotegida por aí...
Nada adiantou. Elas estavam mesmo decididas. Os preparativos foram feitos num único dia. Um farnel com frutas, frango frito farofado, pão e água. Reunidas, as crianças ouviram uma explicação rapidinha sobre o que iria acontecer – e como se esperava que elas se comportassem. E lá partiu o grupo, mais ou menos 20 pessoas. O barco atrasou um pouco, mas chegou. A bordo, todos encontraram cantinhos para se acomodar entre caixas, redes, sacolas.
Havia muitos passageiros locais, gente que dependia do barco para abastecer a casa, já que não havia estrada para aquelas bandas do país. Havia também uma moçada que tocava violão, cantava, contava histórias, falava de astrologia, Zaratustra e sabe-se lá o que mais.
A paisagem era linda, com pássaros coloridos agitando os galhos das árvores, nuvens formando figuras variadas... Tudo de bom. Até que o barco topou com um banco de areia. E ficou encalhado por mais de dez horas. A fome bateu, a noite começou a cair... E quem estava preparado para aquelas emergências? Apenas aquelas senhoras que deixaram suas casas a despeito dos reclamos de seus maridos, claro! Elas dividiram agasalhos com quem precisava. E quando a lata com o frango farofado foi destampada... Os passageiros pareciam gafanhotos num campo de trigo. Trituraram até os ossos!
Finalmente, noite alta, o barco atracou em Paranaguá. Pensávamos que poderíamos dormir no convés, mas nada – o capitão foi categórico e mandou para fora idosos, adultos, jovens, crianças, todos enfim. Aí começou novo capítulo. Onde acomodar aquela turma? Era tarde e não havia dinheiro!
Os detalhes do que veio a seguir eu jamais fiquei sabendo. Ficamos aguardando no porto enquanto os adultos saíam em embaixada. Voltaram em uma Kombi da prefeitura que nos levou a um hotel, onde além de cama macia nos aguardava um jantar quentinho. No dia seguinte, pela manhã, a Kombi estava lá novamente, e nos levou para conhecer a cidade e o porto. O maior luxo. E ainda aparecemos na primeira página do jornal da cidade, com foto e tudo: Estudantes de Pariquera-Açu visitam Paranaguá!
Tomamos o trem que sobe a serra para Curitiba, sobre trilhos importados da Inglaterra na época do Império. Passeamos pela cidade, com direito a um sorvete cada um, além da passagem de ônibus. E retornamos a Pariquera sãos e salvos. Sem um tostão no bolso, mas com a alma repleta de emoções e o prazer indescritível de encontrar pais e avós na praça da matriz, olhares pasmos, definitivamente capitulados: suas mulheres eram mesmo sensacionais.
Adélia estava junto? Era ela que tocaa violão?
ResponderExcluirQue aventura... Quanta emoção!
Adélia estava junto, era ela que tocava violão, e não esquece esta aventura... Como todos nós, eu acho...
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