quarta-feira, 6 de maio de 2015

Tudo tem seu tempo

O velho de que se fala aqui, é claro, nem sempre foi velho. Teve uma vida muito rica de experiências diversas. E um final inusitado.
Nasceu na montanha, em uma família de professores. Leu, estudou, viajou muito, conheceu inúmeras pessoas de variadas culturas e nacionalidades. Embora seus pais tivessem certeza de que ele seria professor, como todos em sua família, esta ideia não lhe agradou. Ainda jovem tomou as rédeas de seu destino e foi ser aprendiz de carpinteiro em um bairro pobre da sua cidade.

Esse nosso personagem tornou-se um ótimo carpinteiro e nunca lhe faltaram encomendas. Trabalhou assim com os braços, as mãos, a cabeça, criando belos objetos, por mais de 50 anos. Por toda a vida acalentou o sonho de envelhecer e morrer à beira mar. Talvez porque o mar lhe parecesse uma força grandiosa, que ele não poderia manejar e controlar com a madeira das árvores. Era maior do que ele, o que ao mesmo tempo o fascinava e assustava.
Quando completou 70 anos, decidiu se aposentar.Tinha algum dinheiro guardado. Vendeu sua casa e comprou uma bem menor, numa praia deserta. Por ali só passavam pescadores e as conversas costumavam ser monossilábicas. Na verdade, ninguém entendia o que aquele homem idoso fazia naquele lugar tão isolado.
Sua rotina era quase religiosa. Acordava ao nascer do sol. Ia à praia pescar algo para o almoço - na mesa, sempre tinha peixe e banana. Depois, sentava-se à varanda e ficava a observar o céu, o mar, o vento, os pássaros, a dança das plantas. Quando uma tempestade estragava algo na casa, ele voltava a ser o carpinteiro habilidoso do passado. Consertava tudo. Estava certo de estar no controle de sua vida.
Uma manhã, entretanto, quando ia pescar, encontrou um homem caído na areia, deitado como morto. Um negro com as roupas rasgadas. Aproximou-se e tentou sentir o pulso do homem, mas não conseguia perceber vida naquele corpo.
O velho trazia consigo uma vasilha com água para beber enquanto estivesse pescando, e despejou um pouco desta água na boca do outro, que de súbito estremeceu. A situação era completamente nova e perturbava a rotina que o velho construíra com tanto cuidado. Seus pensamentos estavam em luta, confusos, mas algo dentro dele já decidira - ele iria consertar o homem que encontrara na areia.
Os dois chegaram à casa com alguma dificuldade. O homem moribundo ardia em febre. Tomou uma caneca de caldo de peixe e dormiu por dois dias. No terceiro dia acordou sem entender onde se encontrava. Ele e o velho não falavam o mesmo idioma, portanto conversavam por sinais.
O velho soube que seu hóspede era marinhairo, que vinha em um cargueiro da África e que o navio foi arrastado por uma tempestade. Não sabia se o navio naufragara mas ele sim, fora jogado na água e nadara até suas forças se esgotarem.
Sem rádio, telefone, televisão, o velho só conseguia se informar das notícias quando passava algum pescador diante e sua casa. E os que pessavam não haviam ouvido sobre o naufrágio de um navio saído da África.
Os dias se passaram e o náufrago seguia doente. Comia, descansava, mas a febre não baixava e havia uma dor persistente por todo o corpo. Por vezes ele vomitava. A dúvida tomou conta do velho. Seria ele capaz de consertar aquele homem? A conclusão a que ele chegou foi de que tudo na vida tem seu tempo, como a maré e as estações. E que talvez a chegada do náufrago indicasse que seu tempo também se aproximava de um desfecho.
Na manhã seguinte preparou uma belíssima mesa com frutas, ovos, café, leite, todas coisas deliciosas e raras naquela região. Chamou seu novo amigo para que acordasse e viesse comer com ele na varanda, diante do mar. Os dois se alimentaram bem, felizes. Então se acomodaram em cadeiras reclináveis para descansar. O náufrago morreu enquanto o velho lia para ele o livro O velho e o Mar, de Ernest Hemingway. O velho adormeceu para nunca mais acordar assim que fechou o livro e os olhos. O céu se encheu de nuvens, foi cortado por raios, e os trovões interromperam o silêncio. O vento varreu areia para dentro da varanda.

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