terça-feira, 7 de setembro de 2010

Diplomacia Especial


Um senhor elegantíssimo, entrando na casa dos 80 anos de idade. Terno impecável. Fala tranquila. E histórias de arrepiar. O embaixador aposentado Ovídio de Andrade Melo, nascido em Barra do Piraí, no Rio de Janeiro, é pintor: artista primitivo que assina Juca seus quadros que retratam do metrô de Londres a paisagens africanas. Também é escritor: publicou “Recordações de um removedor de mofo do Itamaraty: relatos da política externa de 1948 à atualidade”.

Conversei com ele em 2009 por outro motivo. Ovídio Melo foi nosso homem no processo de independência de Angola. O trabalho que realizou resultou num marco. Em 1975, em plena guerra fria, o Brasil, sob regime militar de direita, foi o primeiro país a reconhecer a independência da República Popular de Angola e o governo de Agostinho Neto, presidente do Movimento Popular de Libertação de Angola, o MPLA, apoiado pela União Soviética.

O presidente do Brasil era o general Ernesto Geisel. Seu chanceler, Azeredo da Silveira. Na política externa, por razões conjunturais e de humor de Geisel, o tom era de autonomia em relação aos Estados Unidos. Ovídio, que estava baseado em Londres, esteve na África por várias vezes, no início de 1975, para conversar com os movimentos de libertação das colônias portuguesas, em especial Angola, e conseguir espaço para que o Brasil estabelecesse uma espécie de missão diplomática antecipada, acompanhasse a transição para a independência e planejasse relações futuras entre os países.

A Representação Especial do Brasil em Luanda recebeu carta branca. O embaixador e sua esposa Ivony Melo desembarcaram no aeroporto da capital angolana em março de 1975, em meio a uma guerra-civil acirrada. A missão de contatar lideranças dos três movimentos independentistas, e analisar a situação local, não seria assim tão complicada se estivessem os três partidos estabelecidos em Luanda; se houvesse água, luz, meios de comunicação. Não era o caso. Angola estava em situação caótica.

Aqui vão algumas das aventuras vividas pelo diplomata brasileiro em Angola. Reunidas, suas experiências dariam um romance ao estilo Graham Greene.

Para falar com Jonas Savimbi, chefe da União Nacional para a Independência Total de Angola, a UNITA, foi preciso tomar um carro emprestado a um engenheiro português e percorrer estradas esburacadas por mais de quatro horas, até a pequena cidade de Silva Porto, na província de Huambo, no sudeste do país. Ali nascera Savimbi e ali, também, estava instalado seu quartel-general. O casal foi parado e revistado várias vezes nas ruas de Silva Porto, a caminho do hotel onde seria recebido. Depois, novamente, na sala do primeiro andar onde o encontro de poucos minutos, que nem rendeu muita troca de ideias, foi assistido por guerrilheiros armados postados ao lado de portas e janelas.

Segunda parada: Kinshasa, a capital da República Democrática do Congo, para um encontro previamente agendado com o chefe da Frente Nacional de Libertação de Angola, FNLA, Holden Roberto. Este, durante toda a reunião, falou de si, de seu poder, seus feitos, e sua importância como defensor da democracia e do Ocidente na África.

Dias depois, Ovídio Melo estava em Nairóbi. Queria marcar entrevista com Agostinho Neto em Dar El Salaan, na Tanzânia, onde o MPLA tinha escritório. Soube que o líder do Movimento iria voar bem cedo, no dia seguinte, e se dispunha a conceder a entrevista no aeroporto de Nairóbi, onde faria uma escala rápida. Mas o embaixador brasileiro andava meio cansado de conversas rápidas. Queria mais. Na mesma noite foi para Dar El Salaan disposto a voltar no avião em que Agostinho Neto embarcaria na manhã seguinte. Resultado: a conversa durou todo o trajeto entre as duas capitais africanas. E Ovídio Melo soube que aquela viagem tinha significado histórico e sentimental para Agostinho e sua comitiva. Era o fim do exílio do MPLA na Tanzânia. Depois da escala em Nairóbi todos seguiriam para Luanda, aonde chegariam em 4 de fevereiro, data do início da luta pela independência em Angola.

Por volta de um mês antes de 11 de novembro, o dia da Independência de Angola, o Embaixador conversou com o Brasil e enviou correspondência com suas observações e recomendações ao Itamaraty. Recorda que argumentou:

“Tínhamos sido respeitosos para com todos os movimentos organizados em Angola, tínhamos sido neutros em todas as lutas que presenciamos, tínhamos desejado chegar cedo a Luanda para planejar as relações futuras. Deveríamos, então, reconhecer Angola na data exata da Independência, porque estivemos sempre, e estaremos no futuro, irmanados pela língua, pela cultura, pela História."

Assim foi. No mesmo momento em que Agostinho Neto proclamava a independência em Luanda, o governo brasileiro divulgava, em Brasília, nota de reconhecimento do novo país e de seu governo.

O Embaixador Ovídio estava na sacada do Palácio quando Agostinho Neto discursou. Era o único chefe de repartições consulares a permanecer em Luanda. Não apenas testemunhou a posse do novo presidente angolano: assistiu as manifestações populares e participou das comemorações do MPLA. Dois meses depois estava de volta a Londres. Dali foi ser Embaixador na Tailândia, onde acompanhou os rescaldos da terminada guerra do Vietnam. Mas esta é outra história.

A foto, que me foi enviada pelo Embaixador Ovídio Melo, é datada de 1975. Nela aparece também a embaixatriz Ivony Melo.

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