Como ser um cidadão documentado
Depois de mais de 40 anos passando por bolsos, mãos e balcões, não era de se estranhar que a carteira de identidade estivesse amarelada, com o plástico roto, uma assinatura irreproduzível e, pior, trouxesse uma foto que nem a imaginação mais criativa poderia ligar à portadora. Essa história começa na semana em que esse documento foi recusado duas vezes: já não era prova de identidade e deveria ser renovado.
A velha carteira fora tirada em 1972. Naquele tempo a vida não era muito fácil. Havia ditadura militar no Brasil. Um grupo de quatro pessoas não podia se reunir por muito tempo sob o risco de ser acusado de conspiração. Uma palavra impensada poderia ter de ser explicada a um delegado. Mas tirar carteira de identidade, o RG, era simples. A gente ia à delegacia de polícia próxima de casa, um atendente pegava nossa certidão de nascimento, ajustava duas folhas com papel carbono no rolo da máquina de escrever, datilografava as informações, e pintava nossos dedos de preto para gravar as impressões digitais numa ficha quadriculada. Pronto. Coisa de meia hora. Uma semana depois, era só voltar e pegar a prova de que éramos nós mesmos – cidadãos brasileiros documentados.
Desde então houve muitas mudanças. As Remington foram aposentadas. O papel carbono desaparecera das papelarias. E eu não teria de ir à delegacia do meu bairro, mas a um posto do Poupa Tempo, para renovar meu RG. Pausa para pesquisa. No site www.poupatempo.gov.br, do governo do estado de São Paulo, há informações detalhadas: endereços, papelada necessária para cada categoria de documento, horários de atendimento. Um primor.
É no umbigo da capital paulista, a Praça da Sé, que fica a maior estrutura do Poupa Tempo. Ocupa o piso térreo do prédio da Secretaria da Fazenda. Tem praça com bancos de madeira anatômicos, corredores largos, lanchonetes, banheiros, postos bancários e muito mais. Ali, segundo as contas do governo, passam entre cinco mil e oito mil pessoas por dia. Em tese, o paulista pode resolver muitos problemas numa só tacada e rapidamente. Entre outras coisas, licenciar o carro, regularizar a situação com a Receita Federal, renovar a carteira de motorista... E tirar RG.
Numa quinta-feira de outubro de 2007 tive meu primeiro contato com o Poupa Tempo. Foi rápido, pois eu esquecera o original de um dos documentos exigidos – teria de retornar com tudo certinho. Daí, me prometeram, esperaria uma hora, sairia com um novo RG e direito a renovar carteira de habilitação e passaporte, reconhecer firma em cartório, coisas assim, do dia-a-dia. Foram duas horas de ida, uma parada num quiosque para tirar fotos 3x4, e duas horas de volta.
A sexta-feira amanheceu chuvosa. Levei três horas para chegar à Sé. Às 9h30 estava na tal praça com bancos de madeira anatômicos. Um funcionário, diante de uma corda grossa com arremates dourados, barrava a entrada ao prédio. Explicação:
– Estamos sem sistema. Não há atendimento em nenhum posto do Poupa Tempo.
– Mas vocês devem ter uma previsão de quando voltarão a atender. Ou um sistema alternativo, para casos de urgência.
Recebi um papelzinho impresso – “0800 7722 36 33 – Ligue antes de se dirigir a um Posto Poupa Tempo”.
– A senhora vai cuidar de outras coisas e de vez em quando telefona, para ver se o sistema voltou. É imprevisível...
O 0800 era um número nada imprevisível. Ou dava sinal de ocupado, ou tocava até que a ligação caísse sem que ninguém atendesse.
Fiquei por ali. Vi gente com dificuldade de locomoção, com criança de colo, com pacotes pesados. Alguns sentados nos bancos do saguão. Calados. Olhos parados. Pedi para entrar e esperar, porque não pretendia ir embora sem meu documento. Deixaram que eu passasse pelo cordão de isolamento.
Às duas horas da tarde puxei conversa com as pessoas que estavam como eu, acomodadas embaixo de um enorme cartaz que enaltecia o respeito do governo do estado ao cidadão paulista.
Nazaré da Silva tinha a filha de sete meses no colo. Vinha de São Caetano do Sul, cidade vizinha, para tirar RG. Saiu de casa às 5 da madrugada. Chegou à Sé antes das sete. Na sacola trazia sanduíches, fraldas, uma garrafa de água. Quando pretendia voltar para casa? Só quando fechassem as portas.
Williams de Souza, motoboy por profissão, morava em Monte Belo, na região de Campinas. Viajou para chegar à Sé porque precisava renovar a carteira de habilitação e só ali teria chance de conseguir o documento no mesmo dia. Há dois dias dormia em banco de praça.
– E o pior é que o patrão não acredita que estou na fila do Poupa Tempo, esperando para ser atendido!
Carmem Lourdes, de 66 anos, saiu de Campo Limpo, na zona sul da cidade. Fazia lembrar a pintura de um anjinho barroco – um anjinho envelhecidinho. Rosto redondo e rosado, olhos límpidos quase transparentes, cabelos brancos encaracolados.
– Eu não pago condução porque sou idosa, então só estou perdendo tempo. Mas já pensou nessa gente toda que está gastando dinheiro de ônibus, metrô, refeição, e perdendo dia de trabalho, para não conseguir o que precisa?
Silêncio. O sistema caiu.
Sim, na semana seguinte consegui tirar o documento. Com erro na grafia do meu nome. Reclamação. Nova fila. Outra espera. Ao final da tarde tinha um RG válido obtido sem qualquer poupança de tempo ou paciência.
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